Desconstrução apressada

Atualizado em 20 de julho de 2024 às 10:11

Foi muita coragem de Paulo Puterman meter-se a desmontar a noção frankfurtiana de indústria cultural. A ousadia já fica patente no título de seu estudo, que não deixa dúvida: para o autor, o conceito posto em circulação por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento (1947) estava, meio século depois, em “agonia”. Revertamos ao provérbio: o afobado come cru, pois ainda continua sendo necessário empregar a expressão, e cada vez mais, 30 anos depois da publicação de Indústria cultural: a agonia de um conceito (1994), livro que hoje soa como um eco meio bisonho da igualmente vencida tese de Francis Fukuyama sobre o “fim da História”, divulgada em 1989.

A obra de Adorno e Horkheimer, expoentes da corrente de pensamento conhecida como Escola de Frankfurt, continua tendo um alcance com que o esboço teórico de Puterman nem pode sonhar. Precisaríamos recorrer a ela, por exemplo, para iluminar o estranho fenômeno pelo qual, nas manhãs televisivas brasileiras, uma loira cuja função era converter crianças em consumidores precoces e frenéticos foi substituída por outra que, conversando animadamente com um papagaio de brinquedo, passa a milhões de adultos oficiais um atestado diário de infantilização. Ana Maria Braga é, em certo sentido, uma Xuxa para adultos, nos quais chucha o de sempre – onde mais se encontraria uma chave teórica para entender tal troca de turno, no que se refere à moldagem de consciências pela (ainda) principal emissora de TV brasileira, senão no pensamento frankfurtiano? A marcação do substantivo cultura pelo correlato indústria, que transforma o segundo em adjetivo (portanto, sintática e semanticamente subordinado), continua a descrever com toda a objetividade possível a submissão da grande indústria de bens simbólicos ao imperativo do lucro amplificável pela produção em larga escala, que, em qualquer definição econômica, obviamente barateia os custos de qualquer mercadoria.

É claro que a Teoria Crítica precisa ser atualizada. Afinal, ela floresceu sobre os escombros do nazismo, a mais bem-sucedida lavagem cerebral já empreendida. Daí a postular que não faz mais sentido falar em indústria cultural, a distância é, ou deveria ser, enorme.

Puterman começa por reduzir muito o conceito, e semeia ao longo de seu magro arrazoado uma série de confusões e desfocagens, acabando por simplificar demais o problema. Apresenta, no início, um interessante repertório de curiosidades sobre o surgimento do rádio e do fonógrafo, mas direciona demais para esses dois fenômenos da música comercial um raciocínio que, justamente pela desmedida pretensão, precisaria ser mais abrangente e profundo. Para começar, praticamente ignora a longa discussão processada ao longo do século XX a respeito da ideologia, que, afinal, é o verdadeiro produto da indústria cultural: não se tratava apenas de uniformizar o gosto artístico dos diferentes públicos, mas de criar o que Umberto Eco chamou “homem heterodirigido”, ou seja, indivíduos cujas consciências fossem determinadas por forças exteriores e estranhas aos interesses que a plena posse de uma consciência vigilante determinaria como os mais legítimos. Para simplificar, um ser humano irracional, porque moldado por diretrizes situadas além de seu alcance cognitivo cerceado pelo bombardeio de estímulos estético-afetivos.

Apenas descrever, tomando como base dois casos históricos, o funcionamento do mercado fonográfico é muito pouco para profetizar a “agonia” da indústria cultural. Seria de esperar, no mínimo, a apresentação de uma justificativa menos complacente que a tendência do mercado à diversificação. Ademais, o estudo apresentava o CD como se fosse o suporte definitivo da produção musical, dando o LP como obsoleto: assim como a teorização esboçada, hoje o compact disc está superado.

Sinal comum nesse tipo de discussão rasa, Puterman passa ao largo de um aspecto que os frankfurtianos consideravam essencial: a qualidade estética dos produtos simbólicos. Sim, porque paralelamente à genialidade das sinfonias de Beethoven gravadas pelo regente Herbert von Karajan nos albores da indústria do CD, o problema da indústria cultural diria muito mais respeito à multiplicação superlativa de produtos do mais baixo nível artístico, que acabaram predominando devido à equação logo reproposta – pois vinha sendo aplicada na indústria fonográfica desde sempre – pelos negociantes da anticultura: é mais fácil vender porcaria, porque o produto cultural de qualidade exige um esforço de aprimoramento do gosto que nada tem a ver com comércio, mas sim com a velha tradição humanista da educação dos sentidos, ampliada pelo Iluminismo cujos limites eram justamente o que discutiam Adorno e Horkheimer em sua obra conjunta. Assim, a melhor qualidade técnica da produção de um suporte para a música – ou para qualquer outra forma de arte – poderia, no máximo, garantir a ampliação de um conceito especificamente técnico (ou puramente tecnicista) de qualidade. Quanto à disposição das pessoas para desenvolver seu conhecimento da arte e sua sensibilidade, o estudioso antifrankfurtiano parece nada ter a dizer.

Enxergar “democratização” da cultura em programas do tipo Você decide não significa trilhar caminhos reflexivos capazes de substituir a indústria cultural por um conceito mais adequado ao cenário das sociedades pós-industriais; opostamente, desvia a discussão para um atalho que a empobrece. Sobretudo, tira-a do trilho de um pensamento empenhadamente crítico, de vistas amplas, para depositá-lo no armazém das louvaminhas à tecnologia que hoje fazem alguns néscios sonharem com a imortalidade do indivíduo enquanto a humanidade bordeja o apocalipse nuclear e/ou climático. Nem mesmo logra fazer a diferença entre indústria cultural e “cultura de massa”, expressão que precisa sempre estar entre aspas porque seu substrato semântico é um paradoxo – pessoas massificadas não produzem cultura e tampouco têm discernimento para a fruir: simplesmente comem, como qualquer gado, a ração que for posta no cocho.

A bibliografia de 12 itens já diria sobre esse livro mais do que qualquer resenha.

Título: Indústria Cultural: a agonia de um conceito
Autor: Paulo Puterman
Gênero: Estudos Sociais
Ano da edição: 1994
ISBN: 9788527303729
Coleção Debates
Selo: Perspectiva


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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