Erótico além do clichê

Entre as muitas vantagens do objeto livro está a de ser democrático. O leitor vai a ele somente se quiser, motivado pela curiosidade, pelo interesse ou, no pior dos casos, por alguma obrigação que pode ser descumprida: ninguém é obrigado a ler nada, exceto profissionalmente. Bem diferente é a situação em que conteúdos indesejados são impostos à vista e aos ouvidos de quem não os deseja e até os repudia, como o episódio polêmico na abertura da olimpíada de Paris, cuja desnecessária e improdutiva ofensa a milhões e milhões de cristãos do mundo inteiro, é claro, não cabe discutir aqui. Mas o extremo mais hidrófobo do espectro ideológico, oficialmente “indignado” (pois o moralismo é sempre hipócrita), agradece o relevante serviço prestado a sua causa publicitária e eleitoral.

Suponhamos que um livro como Fundo infinito (2005), de Branca Maria de Paula, seja colocado nas prateleiras de bibliotecas públicas. Imediatamente viriam os defensores dos “bons costumes”, talvez algumas autodenominadas “mães cristãs”, qualificar a escolha como “uma indecência” e por aí afora. No entanto, buscar esse livro na prateleira é um ato individual de liberdade daqueles que Voltaire, patrono do pensamento liberal, certa vez se declarou disposto a defender até a morte.

Subintitular o volume de “contos eróticos” já foi um risco. A autora, ficcionista premiada e segura de seus instrumentos, sabia muito bem disso. Para começar, há muita gente que não consegue fazer a diferença entre erótico e pornográfico, para o que bastaria “dar um google” nas etimologias das duas palavras. Porque o erótico diz respeito à encenação de um impulso inegavelmente intrínseco à condição humana, o desejo sexual,  na maioria das vezes em suas manifestações mais sutis; já o pornográfico está votado à venda de um sucesso mecanicamente garantido na gratificação do desejo. Haverá, é claro, zonas de intersecção entre ambos, até porque segundo Georges Bataille, que escreveu um ótimo tratado sobre o erotismo, os extremos desse fenômeno desembocam na violência contra o objeto desejado. Mas intersecção não quer dizer confusão.

Em Fundo infinito, a ficcionista e fotógrafa nascida em Aimorés (Vale do Rio Doce, região de Governador Valadares) ultrapassa qualquer conceito raso de erotismo, não sem correr o calculado risco de resvalar, justamente no conto que dá título à coletânea, pela pornografia. Não se pode atribuir à autora nenhum embaçamento teórico: seu trato com essa linha da ficção vem de longe, de quando já estreou como escritora sendo premiada, exatamente, num concurso de contos eróticos em 1978. Não falamos de alguém que resolveu se aproveitar da eterna demanda de certo público leitor por estímulos a determinadas áreas do corpo vinculadas ao nosso primitivo cérebro de jacaré. Mesmo assim, o conto-título, caso lido isoladamente, poderia induzir à confusão.

Ocorre que o livro é muito mais complexo. Nem se restringe, como seria de imaginar sem o ler, à exposição de um ângulo puramente feminino de observação. Aliás, num dos melhores textos o protagonista é homem: em “Tinha de acontecer um dia”, o narrador expõe sua angústia de macho pusilânime humilhado por um “compadre” que lhe usurpa a paternidade e não se cansa de encarecer em público as excelências traseiras da “comadre”. Este último detalhe sendo o único elemento do conto que passa perto do erotismo. Primeira de algumas variações excêntricas da coletânea.

Outra narrativa excelente é “Linha 2902”, que consiste numa sequência de perfis para personagens anônimos, todos designados por sua condição social ou profissional: a viúva, o músico, a lavadeira e assim por diante. O único fato que os liga é estarem viajando no mesmo ônibus urbano, e o aspecto narrativo se evidencia apenas nas páginas finais, quando a extensão dos segmentos textuais vai diminuindo até incluir na história o próprio leitor. Inteligente e interessante experimento, que reformula a equação: não se trata apenas de um livro de contos eróticos, mas de uma sequência de narrativas em que o erotismo é pretexto para o exercício de diferentes formas de contar histórias.

Mas, sendo Branca uma mulher, é claro que o leitor pode esperar o predomínio do ponto de vista feminino. Assim é que o livro começa com “Em ritmo tropical”, relato de uma senhora casada sobre as soluções meio acrobáticas que ela encontra para praticar sexo com o marido cansado do trabalho e meio desinteressado da tarefa erótica, à parte as dificuldades criadas pela presença das crianças logo ali na sala, vendo TV. Assim como nesse conto, em vários outros o macho fica devendo; a propósito, a autora registrou na dedicatória seu agradecimento aos “homens que me prometeram o paraíso”. Uma das tônicas da coletânea é a decepção com o desempenho afetivo (e não apenas sexual) masculino. Nesse rumo se situa “Dolores”, a história mais longa; sua principal nota são as angústias de uma grávida, e dentre elas a indiferença do marido é uma das mais incômodas para a personagem principal.

A autora, porém, não envereda pelo ressentido pinicar a corda fininha da masculinidade “tóxica”. Num esforço de compreensão do diferente, chega a assumir, em “Língua viva”, a grosseria da linguagem masculina a respeito do sexo, vocalizada por uma mulher que se revela, no desfecho, tremenda mal-amada a dividir seus recalques com um… quadro na parede! Branca sabe que, na dialética entre a delicadeza feminina e a rispidez masculina, muitas vezes as coisas se confundem e misturam. Que a conversa entre homem e mulher não pode ser (parafraseando o Padre Vieira) um “xadrez de palavras” no qual tudo se reduz ao contraste entre preto e branco.

São doze os textos que compõem Fundo infinito. O material é variado, em nada respondendo a qualquer ideia pronta de “livro erótico”. Seria estender demais esta resenha a tentativa de dar conta de todos, mas há um deles que merece menção, e por várias razões: “A graça”, além de ter outro protagonista masculino, é quase um miniconto e termina pela referência ferina, ao comparar um ex-homossexual convertido ao pentecostalismo a “qualquer centopeia, criatura de Deus”. Seria uma ofensa a determinadas crenças religiosas ou pura manifestação da liberdade de pensamento e expressão, pressuposto indispensável a qualquer conceito de democracia?

Título: Fundo Infinito
Autor: Branca Maria de Paula
Gênero: Contos
Ano da edição: 2005
Selo: Editora Totalidade/Rosa Rumo 


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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