A ideia de justiça em Nancy Fraser: Uma breve apresentação

Atualizado em 31 de outubro de 2024 às 13:12

A imagem é uma montagem com várias silhuetas de rostos sobrepostos, feitas de diferentes tons de pele, formando o contorno de um perfil humano à esquerda.
Imagem ilustrativa. (Reprodução/Lightspring/Shutterstock)

Nancy Fraser, pensadora estadunidense contemporânea, é herdeira da Teoria crítica da Escola de Frankfurt, a qual, como sabido, formou-se em torno do trabalho de autores como Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse, Habermas e Honneth, para lembrar os nomes mais conhecidos.

Dentre as diversas linhas de pesquisa desenvolvidas por Fraser ao longo de sua trajetória, destacam-se seus estudos relativamente recentes sobre as reinvindicações de justiça no mundo atual, cuja especificidade seria – máxime após a derrocada do socialismo soviético (fim do século XX para cá) – uma certa crise ou desgaste das discussões tradicionais, no campo da esquerda, sobre interesses ou consciência de classe, exploração e redistribuição econômica, paralelamente ao aumento de lutas relacionadas à questões de identidade, diferença, dominação cultural e reconhecimento.

Em que pesem as injustiças de ordem material (como opressão econômica, exploração e diferenças de classe) tenham se mantido ou mesmo aumentado mundo afora, fato é que, segundo o diagnóstico fraseano, é impossível ignorar a introdução – ou, de todo modo, a ascensão –  de mais uma pauta no debate atual sobre a (in)justiça, qual seja, a pauta da justiça como reconhecimento, de modo que, doravante, não é mais possível pensar a justiça apenas como uma questão de redistribuição (econômica), mas também e quiçá principalmente, como uma questão de reconhecimento (cultural).

Nesse diapasão, hodiernamente, falar de justiça é falar de redistribuição e reconhecimento, o que não significa, advirta-se, que os grupos injustiçados o sejam, sempre, nos dois planos, podendo, a depender do caso, padecerem “apenas” ou “prevalecentemente” da primeira forma de injustiça (má distribuição) ou da segunda (falta ou insuficiência de reconhecimento).

Como cediço, a primeira forma de injustiça prende-se à dimensão econômica, envolvendo, dentre outras coisas, a exploração de trabalhadores(as), a marginalização dos segmentos despossuídos e a privação de acesso a uma série de recursos, ou, conforme o linguajar jurídico-constitucionalista, a privação de acesso a uma série de bens e serviços comuns da vida associados à boa parte dos direitos e garantias fundamentais.

Dessarte, trata-se da forma de injustiça, digamos, tradicional, e trabalhada por vários pensadores até o século XX, tais como, para ficar em dois nomes emblemáticos, Marx e Rawls, representantes, respectivamente, do socialismo comunista e do socialismo liberal, logo, das duas principais abordagens da justiça como redistribuição concebidas e praticadas, segundo graus vários, no decurso do século XX para o enfrentamento das injustiças de ordem econômica.

Por seu turno, a segunda modalidade de injustiça, cuja discussão propriamente dita é mais recente, tem que ver, para Fraser, com a dimensão cultural, perfazendo-se por temáticas como o desrespeito às diferenças, a dominação cultural entre grupos e o ocultamento de não poucas categorias/identidades culturais. Naturalmente, não é que esses problemas de injustiça não existiam antes. Porém, não se pode negar que só logram adentrar de vez no debate público a partir do final do século XX. Com efeito, diferentemente da injustiça econômica, que exige redistribuição, a injustiça cultural, para expressarmos à maneira da autora, exige reconhecimento dos grupos discriminados, desrespeitados, dominados ou ocultados.

Sendo mais específico, no tocante à redistribuição, lembra-nos Fraser que seu propósito é abolir ou mitigar o mais possível as desigualdades arbitrárias de um grupo com relação aos outros, ou, consoante o jargão jurídico, abolir ou mitigar os privilégios enquanto opostos aos direitos.

Por óbvio, o problema aqui não são as diferenças “naturais”, por assim dizer, mas a diferenciação injusta, socialmente fabricada. Sendo certo que, a maneira de fazer frente a esse problema, segundo a Professora da New School University, é senão promovendo o que ela chama de “desdiferenciação”, ou, o que é o mesmo, a igualdade material na forma de redistribuição dos recursos econômicos (a título de exemplo, pense-se na luta de trabalhadores e trabalhadoras pela superação das diferenças de classe).

Embora – e esta ressalva é importante –, para os efeitos mais imediatos da discussão fraseana, pareça secundário saber se tal redistribuição deveria operar-se, por exemplo, pela via da revolução socialista em nome da propriedade comum dos meios de produção, tal como pugnado por Marx & Cia., ou pela via da implementação democrático-reformista de princípios equitativos à la Rawls.

Lado outro, no que tange ao reconhecimento, a pensadora norte-americana legatária da Teoria crítica destaca que, à primeira vista, o seu escopo parece contrário ao da redistribuição, já que sua palavra de ordem não é “desdiferenciação”, igualdade substancial ou algo que o valha, mas, precisamente, diferenciação, ou, como também se poderia dizer, valorização das desigualdades “por direito”, ou, de todo modo, não-arbitrárias, não-injustas.

De fato, na justiça como reconhecimento, de um lado, o problema é o não reconhecimento – no sentido de opressão cultural, desrespeito ou ocultamento – da justa especificidade ou diferença de um grupo, e, de outro, a luta é pelo reconhecimento do direito de existência de tal especificidade ou diferença de um grupo com relação aos demais, dado que especificidade ou diferença justa, ou, no mínimo, não-injusta, assente que desprovida de arbitrariedade (pense-se, por exemplo, na luta pelo reconhecimento das formas de manifestação cultural de matriz africana, das orientações sexuais atípicas, do posicionamento ateísta etc.).

Como se observa, enquanto a redistribuição chama a atenção para as distinções injustas de um grupo com relação aos demais, o reconhecimento chama a atenção para o direito ao respeito das distinções justas de um grupo em face dos outros (até porque, no frigir dos ovos, “é na diferença que nós somos iguais”). Pela ótica da redistribuição, a diferença de um grupo com relação aos restantes é negada, porque injusta, donde sua tônica ser a desdiferenciação, ao passo que, pela ótica do reconhecimento, a diferença de um grupo ante os demais é afirmada, porque (não in)justa, donde sua tônica ser a diferenciação.

Esse dilema aparente entre as duas formas elementares de reinvidicação de justiça – e que faz desta, na contemporaneidade, algo tão ambivalente – Fraser denomina de dilema da redistribuição-reconhecimento, o qual não infrequentemente responde por desarticulações ou divisões entre os grupos engajados nas lutas por justiça (comumente minoritários do ponto de vista político), de vez que comprometidos com interesses aparentemente conflitantes.

A propósito, o dilema em questão, consoante apontado por Fraser, torna-se especialmente agudo em meio aos grupos denominados por ela de coletividades bivalentes, a exemplo dos negros, a um tempo explorados economicamente, a começar pelo passado de colonialismo e escravização, e culturalmente apartados; e das mulheres, por muito tempo confinadas ao trabalho doméstico-reprodutivo ou subempregadas no mercado de trabalho, ou, ainda, neste empregadas em condições desiguais de remuneração comparativamente aos seus pares homens, e socioculturalmente inferiorizadas.

E isso porque, em parte, sofrem as duas injustiças, a material, proveniente da estrutura político-econômica, e a cultural, atrelada ao sistema ou estrutura dos valores, e, em parte, demandam, por via de consequência, as duas formas de justiça, a redistributiva e a do reconhecimento (e.g. abolição da distinção de “raça” e gênero no mercado de trabalho combinada com o reconhecimento da condição ôntico-existencial, dos valores e direitos dos negros e das mulheres).

A bem ver, as fontes das injustiças desses grupos bivalentes, como explana Fraser, são primárias e co-originárias, razão pela qual não ser simples o seu enfrentamento, quando mais não seja porque a redistribuição não conduz necessariamente ao reconhecimento e vice-versa (e.g. de um lado, se é certo que negros e mulheres precisam lutar pela “desdiferenciação” no campo político-econômico, de outro, não é menos certo que precisam lutar pelo direito à existência de sua diferença no campo cultural-valorativo, uma causa não implicando necessariamente na outra, por serem distintas, embora não adversas).

Quanto ao mais, vale destacar que, para a filósofa – que também poderia ser qualificada como socióloga, considerando-se o histórico de sua docência e interesses acadêmicos – há duas abordagens políticas para lidar com o dilema da redistribuição-reconhecimento, a saber: a abordagem da política de afirmação e a abordagem da política de transformação.

A primeira abordagem, traduzível em políticas afirmativas de condão adaptativo, visa corrigir os efeitos terminais das injustiças, sem, contudo, atacar as fontes destas (e.g. políticas de beneficiamento tributário para grupos de pessoas economicamente vulneráveis; políticas de reconhecimento adicional da identidade gay e lésbica realçadoras da dicotomia sexual homo-hétero etc.).

Já a segunda, traduzível em políticas transformativas de condão revolucionário, pretende ir até a raiz das injustiças mediante a remodelação da estrutura social subjacente (e.g. políticas de progressividade tributária radical, quando não de expropriação e redistribuição da propriedade dos meios de produção; políticas queer desestabilizadoras da diferenciação sexual algo convencional homo-hétero etc.).

Isso posto, podemos concluir que, independentemente do mérito do aporte de Fraser – que, de resto, é evidente – e da possibilidade de se tratar da questão da (in)justiça, em especial para fins de atuação estratégica, com ênfase na redistribuição ou no reconhecimento, cumpre assistir razão à filósofa quanto à necessidade de, neste nosso século XXI, evitar os unilateralismos (materialista ou culturalista), não perdendo de vista as duas dimensões da (in)justiça – ou mesmo de outras, como a dimensão da representação enquanto paridade participativa, desenvolvida com mais vagar pela autora na última etapa de suas reflexões –, no final das contas conectadas, parece-nos, a pelo menos dois problemas originários, sejam eles: o problema do direito à igualdade, inclusive na forma do igual direito de ser diferente, e o seu problema gêmeo, a saber, o problema da tolerância (no sentido forte do termo).


Referências

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. In: Caderno de campo, São Paulo, n. 14/15, 2006, p. 231-239.

FRASER, Nancy. Justiça interrompida: Reflexões sobre a condição “pós-socialista”. São Paulo: Boitempo, 2022.

KELSEN, Hans. A democracia. Trad. Ivone Castilho Benedetti; Jefferson Luiz Camargo; Marcelo Brandão Cipolla; e Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2014.

NOBRE, Marcos. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2 ed. São Paulo: Editora Ática, 2000.

 

Waldir Severiano de Medeiros Júnior é pós-doutorando em Direito e Justiça (FDUFMG). Mestre e Doutor em Direito e Justiça (FDUFMG). Professor colaborador de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG. Consultor Jurídico (OAB-MG 216.370). Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política e Administração Pública.

Danielle de Jesus Dinali é doutora e mestra em Direito Privado – Direito do Trabalho – na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito do Trabalho pela Instituto de Educação Continuada – IEC Puc-Minas. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Diretora do Grupo de Pesquisa Direito do Trabalho e Modernidade. Membro do Grupo de Pesquisa e de Estudos Retrabalhando o Direito – RED. Temas de interesse: Direito Privado (com ênfase em Direito do Trabalho), Filosofia, Política e Administração Pública.

Mhardoqueu Geraldo Lima França é doutor e mestre em Teoria do Direito pela PUC Minas. Coordenador e Professor do curso de Direito da UNIFENAS Divinópolis. Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política e Administração Pública.

As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas

LEIA TAMBÉM