Detalhe do quadro “A morte de Sêneca”, de Rubens (1615). (Imagem: Reprodução/Internet)
Enquanto pensador, o autor que iremos analisar, é parte de uma família filosófica chamada de Estoicismo, nome derivado da palavra grega “stoá”, que significa pórtico ou portal. Como esse portal em Atenas era pintado com cores vivas, ele recebeu ainda um adjetivo, “poikilé”, ou seja, foi debaixo dessa stoá poikilé, o portal colorido, que os estoicos, se reuniam como alternativa a ágora, local restrito onde aconteciam os debates de filosofia e problemas urbanos até então. Dessa forma, a história nos mostra o estoicismo como uma forma bastante remota, no sentido cronológico da palavra, de popularização da filosofia.
O estoicismo foi fundado por Zenão de Cítio[1], mercador fenício que viveu entre 334 e 262 a.C. Zenão chegou a Atenas depois que o navio onde ele estava naufragou, foi ali que se interessou por filosofia e formou seu grupo. Depois do período chamado de Helenístico, o estoicismo se espalhou em Roma, inicialmente através de Diógenes da Babilônia (230 – 150 a.C).[2]
A Ira, raiva, cólera, fúria
O assunto que se apresentará diante de nós é tão comum, que sob tal condição corre-se o risco de, por muitas vezes, não ser motivo de nossas reflexões. Contra essa omissão que, de desapercebida, pode passar a ser perigosa, é que Lucius Annaeus Sêneca e seus ensinamentos sobre a ira, ou a raiva, ou a fúria, nos parece tão convidativo.
Tão apetitoso quanto a comida ou a bebida que você mais gosta, Sêneca serve um banquete abundante para o tema destas linhas. Então, o autor utiliza de recursos da história e da filosofia para, num instrumento reunidor de ambas as ciências, oferecer colaboração contra a tendência de se enfurecer, ou de lidar com fúria, diante dos episódios do nosso dia a dia.
Como já foi dito, Sêneca é um autor de dois mundos, o da filosofia e o da história. E essa é uma ligação interessante. José Carlos Reis, historiador e filósofo, professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diz que a Filosofia sem a História pode se tornar tão especulativamente abstrata que incorre na possibilidade da irrelevância. Já a História sem a Filosofia pode se tornar, de tão objetiva, produtora de uma visão curta e restrita da realidade. Por que então, não uni-las?
Então vamos a quem, desde muito remotamente, fez isso com maestria. Sêneca nasceu em Córdoba, atual território da Andaluzia, na Espanha, no ano 4 a.C. À época, a cidade era pertencente à Roma, na chamada Hispânia.
O autor não teve vida fácil, foi conselheiro de um imperador cuja trajetória foi marcada pelos excessos: Nero[3]. Ao longo de seu trabalho, e justamente por causa dele, Nero se irritou com Sêneca que criticava seu caráter sempre abrasivo. E foi a ira do imperador que condenou Sêneca a praticar suicídio, sentença penal difundida de então.
Mas o que é a ira? Essa manifestação do ser que tanto fez o nosso pensador famoso refletir? É bem certo, que todos nós temos uma noção. Como por exemplo, daquela hora que estamos limpando a casa e por mais que você se esforce ao passar de novo pelo local onde você acabou de limpar e encontra aquele pelo de cachorro. Ou quando nos levantamos à noite, ainda bastante sonolentos e, apreciando os efeitos do repouso, e damos com força com o dedo mindinho na quina de algum móvel, quem nunca?
Mas não é desse nível de raiva inevitável que Sêneca se refere nesta obra. Ele pensa sobre um patamar de raiva dominante, persistente, perene e por muitas vezes estrafalário capaz de nos dragar. Que de tão repetido começa a fazer parte da nossa perspectiva de mundo. Vira um instrumento pelo qual lidamos com as situações, essa é a ira. Ou seja, existe uma forma comum que desponta em nós para lidarmos com qualquer situação do cotidiano e que, aos poucos, pode se instalar e que é sempre, segundo nosso autor, prejudicial.
Não me vem exemplo melhor do que a visão do nível de raiva e fúria do técnico do Palmeiras Abel Ferreira que no dia 28 de janeiro de 2023, quando chutou o microfone de campo durante a final da Supercopa. Palmeiras perdeu, né? Não! Claro que não, ele ganhou do Flamengo, na ocasião por 4 a 3, com dois gols de Gabriel Menino e Raphael Veiga. Toda aquela cena de raiva estampada na expressão facial de Abel parece destoar da vitória de sua equipe, que enfim, não só venceu, como levou aquele título.
É a esse nível de cólera que Sêneca volta seus esforços. Uma raiva que se manifesta exagerada, cotidiana e desproporcional à realidade.
A obra de Sêneca traz três episódios históricos de governantes romanos e persas que extrapolaram os limites racionais ao agir acelerados por intempestiva raiva, que o autor chama de “breve loucura” ou “crimes da mente”. No mais emblemático deles, surge a figura de Cambises I.
Rei dos persas entre 530 e 522 a.C. e filho de Ciro II, além de conquistador do Egito, Cambises manda matar o filho de um conselheiro durante uma festa porque o conselheiro o advertira sobre seu estado de embriaguez. Cambises era um guerreiro, à imagem do pai. Um conquistador. Igualmente acostumado às batalhas, também era bastante apreciador das festas. No salão ocupava um trono. Numa de suas famosas reuniões, exagerou como de costume do vinho. Um de seus conselheiros mais próximos o advertiu que seu intenso estado de embriaguez não condizia com a postura de um conquistador da sua envergadura.
Cambises, irado, ordena que o filho do conselheiro se dirija até a porta de entrada da festa e pare ali; em seguida que se vire para a cadeira do trono. Manda que o filho erga a mão direita. Cambises pega o arco e a flecha e dispara. A flecha atinge em cheio o coração do filho do conselheiro, que de resto se cala. Cambises então profere a humilhante frase: “ainda acha que estou muito bêbado?”
Se o exemplo nos horroriza, Sêneca tem uma pequena surpresa. “Cada homem traz no peito a cabeça de um déspota e está disposto a cometer excessos, mas não quer se submeter”. Não que nosso filósofo-historiador acredita que todas as pessoas possam sair por aí soltando flechas no coração dos filhos de seus desafetos, mas ele prevê que cada um pode cometer excessos proporcionais à sua condição de vida e de poder.
O que guia o pensamento de Sêneca no livro está em um princípio de ouro “a raiva não é natural à humanidade”. E por “não natural”, o autor quer dizer que, embora os atos raivosos sejam praticados por nós humanos, eles são contrários à vida natural. Por vida natural, os estoicos acreditavam ser aquela alinhada à ordem do cosmo, ou seja, a raiva desorganiza o universo ao nosso redor, em palavras simples. Ou seja, é um artifício maléfico. E se é artificial pode ser desfeito, ao que o autor lembra do seguinte: “Todos nós somos poderosos contra o mal”.
Pensamentos Causais
A raiva, é para Sêneca, um estado onde o ser raivoso autoriza-se a uma licença para enfurecer e cometer os excessos. Ou seja, o ser irado usa a desculpa de que estava com raiva para abusar da própria liberdade. Aquele dominado pela cólera, para o autor, acredita ter uma licença para cometer os excessos sob a desculpa de que foi a raiva que o levou até aquele momento. Tanto que, não raro ao pedir desculpas, o ser irado, geralmente usa dessa artimanha, a final estava possuído pela ira. “A irascibilidade tem essa falha, não quer ser governada”, sentencia em sua obra.
A segunda é uma outra ilusão. A ilusão sobre nós mesmos: “A causa da raiva é a crença de que estamos feridos”. “Uma grande parte da humanidade fabrica suas próprias queixas”, pensamento que depois Jean Paul Sartre irá recuperar. Diz o autor, “a raiva muitas vezes vem até nós, mas muitas vezes vamos até ela (…) uma presunção arrogante de nossa própria importância nos torna propensos à raiva”. Cremos que estamos feridos!
Conselhos
Diante de tantos desafios que são tentadores na medida que nos instigam a sentir raiva, Sêneca tem um conselho. “Aquele que o feriu deve ser mais forte ou mais fraco que você. Se for mais fraco: poupe-o. Se for mais forte, poupe-se”. Para Sêneca não importa como você foi ferido, mas como você reage ao ferimento. Essa é a regra. Não é o que fizeram, é o que você pode fazer com o que fizeram.
Para os estoicos, o mundo dos acontecimentos é dividido em dois. Uma metade é aquilo que você pode controlar. A outra é aquilo que você não pode controlar. Ora, se os outros você definitivamente não pode controlar, busque controlar a si próprio, nos recomenda.
Resultados e consequências
Para que serve a raiva? É a pergunta que Sêneca também se fez e nos faz hoje ainda. E o critério que o autor romano elege para essa indagação são os fins. A que fins a raiva nos leva, se a inteligência e a razão podem nos levar mais rápido e com menos efeitos colaterais?
Sêneca diz: “A tristeza é companheira da raiva. Porque toda raiva acaba em tristeza ou por fracasso ou por remorso.” Para Sêneca a humanidade foi criada para o bem mútuo e a raiva para a ruína mútua, nesse sentido valoriza o princípio do perdão, tão rico ao estoicismo.
Remédio
“O maior remédio contra a ira é o adiamento. Implore à raiva isso no início, não para perdoar, mas para fazer um julgamento correto sobre ela.”
O conselheiro de Nero insiste que mesmo que você não ganhe nada com o adiamento, o que fizer depois disso, vai parecer ser o resultado de uma deliberação madura, não o fruto de um momento intempestivo, um impulso. Mas saiba: a raiva não quer ser controlada, por isso não estranhe se na primeira vez não conseguir. É um exercício.
Outra advertência é saber qual é o seu ponto fraco. Nem todas as pessoas se ofendem da mesma maneira, então você deve saber qual seu ponto mais melindroso para que possa protegê-lo com especial cuidado.
Conclusão
Não precisamos concordar com Sêneca. Aristóteles por exemplo, muito antes da existência da filosofia estoica, achava que a raiva, dentro dos limites controladores, pode ser uma virtude. O fundador do Liceu defendia, em tempos pretéritos ao de Sêneca, que há uma parte da alma capaz de se enraivecer e que isso, além de natural podia até, dentro de alguns limites, ser útil. Ao que Sêneca dirá que a raiva tudo controla com velocidade e não há meia-raiva.
Não. O que Sêneca defende não é um dogma; antes um convite à reflexão. Para Sêneca e o estoicismo, a raiva não é sinônimo de coragem. Ela pode até, momentaneamente substituir um ato de bravura, mas quando a raiva passa, essa espécie de coragem artificial também passará. A coragem é um ato amadurecido e construtivo em direção à paz, a raiva não. A obra é rica em inúmeros outros detalhes e reflexões que podem, a despeito desse breve resumo, despertar aperfeiçoamentos pessoais surpreendentes.
[1] Cidade fenícia na pertencente a ilha de Chipre (DINUCCI, 2023.)
[2] DINUCCI, 2023.
[3] Nero governou Roma de 37 a 68 d.C.
Referências
Aristóteles. De Anima. São Paulo: Edipro: 2011.
Marco Aurélio. Meditações: os escritos pessoais de Marco Aurélio Antonino, imperador filósofo. Introdução de Aldo Dinucci. São Paulo: Penguin – Companhia das Letras, 2023.
REIS. J. Carlos. História da Consciência Histórica Ocidental Contemporânea. Belo Horizonte. Autêntica. 2011
Sêneca. Sobre a Ira. São Paulo: Editora Camelot, 2022.

Lucas Magalhães Costa é doutorando em História e Culturas Políticas pela UFMG, mestre em História Ibérica pela UNIFAL-MG e jornalista.
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