Meio Rimbaud, meio Kafka, inteiro Alfonso Alcalde

Entre os vinte e poucos países nos quais morou o escritor chileno Alfonso Alcalde (1921-1992), em certa ocasião seu paradeiro esteve na divisa do Brasil com a Argentina. Nessa época, ele exercia a curiosa profissão de contrabandista de cadáveres: trazia para o lado de cá o defunto devidamente maquiado e sentado no banco de um automóvel, porque saía mais em conta o sepultamento em terras brasileiras. Não é a única semelhança de Alcalde com aquele menino provinciano Arthur Rimbaud, que entre os dezesseis e os dezenove anos escreveu uma das mais originais obras poéticas de todos os séculos, logo em seguida tendo emigrado para a Abissínia, onde enriqueceu como traficante de armas e esqueceu totalmente a poesia.

Não exageremos na comparação, pois a estatura literária de Rimbaud é virtualmente inatingível, mas o fato é que muitos dos traços da poesia rimbaudiana estão presentes nos escritos de Alcalde, dos quais a editora da Universidad Católica de Maule acaba de publicar uma “antologia em breve”. E o parentesco ilustre não se restringe ao poeta francês, mas alcança Franz Kafka, cujos relatos brevíssimos evocamos a todo momento ao percorrer as duas primeiras partes do volume, “Epifanía cruda” e “114 cuentecillos de mala muerte”, já publicadas em vida do autor. A terceira parte era inédita e se intitula “Grafitis”, dando nome também ao volume: é composta de aforismos que igualmente lembram os de Kafka, além de se parecerem  – forma à parte – com o haicai, poema japonês composto de apenas três versos.

“Só se vislumbram pistas falsas, equívocas e, portanto, verdadeiras”, diz o narrador pouco além do primeiro terço de Grafitis, no miniconto “Os obstinados esquecimentos da memória”. Aliás, miniconto?, narrador? Os relatos de Alcalde são, como muitos dos kafkianos, comentários sobre uma história da qual pouco se narra. (A propósito, os trechos traduzidos aqui são de responsabilidade do resenhista.)

Alfonso Alcalde (1921-1992). (Foto: Reprodução)

As pistas são verdadeiras justamente por serem falsas – esse paradoxal modo de expressar-se é uma das marcas mais persistentes do estilo alcaldeano. Isso porque a ficção do autor, muitas vezes vizinha da poesia, não persegue a transparência, a legibilidade fácil: pelo contrário, deixa o leitor embatucado a todo momento, porque o observador do mundo que produz tal ficção não pretende esconder, jamais, estar ele próprio embatucado. O laboratório expressivo de Alcalde opera, justamente, passando recibo das maiores perplexidades. Daí não se esperar que leitores acomodados a quaisquer noções de estabilidade existencial ou ideológica se comprazam nessa exigente escrita.

É o grau de exigência, porém, que torna Alfonso Alcalde um autor muito relevante, nesta época em que estar “por fora” pode até ser um belo elogio. Alcalde, mesmo tendo publicado muito, viveu à margem do sistema literário – pois, cadê o seu lugarzinho naquele cânone onde se entronizam figuras como Pablo Neruda, que, por sinal, prefaciou seu primeiro livro?

Basta percorrer esses Grafitis para entender que não poderia haver para seu autor, nem durante a ditadura Pinochet e tampouco depois da redemocratização do Chile, um lugar ao sol dos escritores “populares”. Porque a fabricação da popularidade, seja onde e quando for – embora obviamente mais nuns tempos e lugares que noutros –, envolve algum tipo de facilitação. E Alfonso Alcalde não facilita.

É possível mapear regularidades temáticas e formais, até mesmo obsessões, na antologia. A par da narrativa econômica, tendente a se restringir ao comentário de uma possível (ou impossível?) narração, Alcalde lança  mão, como personagens, de certos animais ou, bastantes vezes, e membros do corpo humano e objetos inanimados. É insistente, também, nas cenas circenses e marítimas, assim como repropõe de modo recorrente o assassinato a facadas. A tais deslocamentos do cenário e das personagens mais prováveis da ficção recorre para escarnecer da racionalidade e fazer burla dos sentimentos morais. Sua verruma resvala do fantástico ao surrealista, caindo sem hesitar no humor negro, como nesta passagem de “A inocente fervura de uns olhos”:

Quando a panela lança sua primeira fervura lhe acrescentam as bolotas dos olhos das
vacas que começam a flutuar com um movimento inequívoco dando pinotes à direita
e à esquerda como se buscassem a grande verdade da vida.

Trata-se aqui da cena em que um empregado de matadouro prepara um cozido com os rejeitos da rês abatida, mas há também, alhures, o ex-palhaço que se vinga da mãe por tê-lo obrigado, quando criança, a tomar quatro pratos de sopa por dia – na cadeia, diverte-se desenhando mulheres nuas pelas paredes. É uma crueldade humorística, talvez um humor cruel, recurso dos mais usuais em Alcalde; dele, talvez “O oneroso sepultamento de um porco” seja o melhor exemplo, com seu desfecho em que o suíno do título é executado e, por “não ser vingativo”, junta-se ao público no aplauso ao carrasco, que fazia seu trabalho usando umas elegantes luvas brancas. Esse é, também, um dos relatos em que a influência de Kafka fica mais evidente.

Os aforismos da terceira parte seguem, em geral, a mesma linha dos contos. Muitos deles, caso dispostos em versos, seriam quase perfeitos haicais. Merecem citação, especialmente:

As monjas têm cheiro de maçã verde.
Se a chuva tivesse patenteado seu invento, não estaria pedindo esmola na saída do
Instituto de Meteorologia.
As calamidades não têm vida privada.
O deserto morreu na flor da juventude.
A urbanidade consiste em não transformar o assassinato em um vício.
A moral é meticulosamente imoral.
Nas intermináveis noites de insônia, falou com Deus e lhe perguntou: que tal
passar a régua e abrir conta nova?

Difícil representar condignamente, numa síntese tão apertada, as tiradas surpreendentes de Alcalde, ora fulgurantes de beleza poética, ora incomodatícias por sua inquietude existencial. A partir desta rápida amostra, calcule o leitor: quantos autores assim não andarão errantes à margem dos sistemas literários crescentemente ideológico-negocistas?


Título: Grafitis
Autor: Alfonso Alcalde
Gênero: Antologia
Selo: Ediciones UCM
Ano da edição: 2024
Páginas: 192

    Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Entre 2022 e 2024, foi colaborador do Jornal UNIFAL-MG, onde assinou a coluna semanal exclusiva Montra, dedicada à crítica e à divulgação de produções literárias.

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