Há uma epidemia de autismo no Brasil?

Foto ilustrativa. (Imagem: Reprodução/Canva Education)

Segundo o Censo Demográfico 2022, uma em cada 85 pessoas são diagnosticadas com autismo no Brasil, correspondendo a 1,2% da população brasileira. Essa foi a primeira pesquisa do tipo realizada no país, uma vez que foi só em 2019, a partir da Lei nº 13.861, que alterou a Lei nº 7.853, de 1989, que o Transtorno do Espectro Autista foi incluído no Censo. Antes do censo, a estimativa apresentada pela Academia Médica em 2021 indicava cerca de dois milhões de pessoas portadoras de TEA no Brasil –  um aumento de 20% nos casos. Se compararmos com as estimativas realizadas pela Abra – Associação Brasileira de Autismo – em 1997, o aumento é de cerca de 300%, partindo de 600 mil para 2,4 milhões de pessoas diagnosticadas.

De fato, de 1997 para 2022 há um salto temporal significativo. Só nesse período o DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da American Psychiatric Association – foi alterado três vezes e, em cada versão, a própria definição de autismo também foi sendo modificada. Foi em 2013, porém, que o autismo foi classificado da maneira como conhecemos hoje. Vários transtornos, como a Síndrome de Asperger e os Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD), passaram a ser considerados como um só transtorno: o TEA. Allen Frances, diretor do DSM durante sua quarta revisão em 2013 e autor do livro Saving Normal, disse em entrevista ao jornal El País como essas mudanças influenciam a maneira como lidamos com o “normal”, uma vez que não foi só o TEA que ganhou novas classificações. A partir dessas alterações, nossa relação com o que podemos chamar de “normal” vem sendo cada vez mais estreita e orientada por manuais de diagnósticos e de conduta. Ou seja: a “normalidade” é construída socialmente, sujeita a variações ao longo do tempo.

Esse cenário não se limita ao Brasil. Pesquisas mostram um aumento de, 382% nos casos de autismo infantil nos Estados Unidos, partindo de um em cada 150 crianças diagnosticadas para um em cada 31. Isso reflete não só maior reconhecimento diagnóstico, mas também mudanças de critérios, maior acesso a serviços e maior consciência social. Ou seja, parte do “aumento” é estatístico e cultural, não apenas biológico, como apresentado anteriormente.

Já em 2017, a professora Maria Aparecida Affonso Moysés, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e militante do Movimento Despatologiza, nos chamava atenção sobre uma “falsa epidemia”. Em entrevista para o jornal da UFMG, ela alerta: “A epidemia é de diagnósticos, não de transtornos mentais”. Cada vez mais pessoas vêm procurando por um possível diagnóstico e sendo enquadradas como autistas. Esses diagnósticos têm um grande impacto social, político e econômico, principalmente no Brasil onde, de acordo com a Lei nº 13.146/2015, pessoas autistas de qualquer nível de suporte são consideradas pessoas portadoras de deficiência e, portanto, aptos a direitos incluíndo assistência médica e financeira. Mas será que todas essas 2,4 milhões de pessoas realmente precisam desse apoio? O professor e psiquiatra Joel Rennó Jr. diz em sua reportagem para o Notícias R7: “embora a acurácia do diagnóstico tenha melhorado, muitos diagnósticos são errôneos, prejudicando o acesso de verdadeiros autistas a tratamentos”.

Assim, os números sobre o autismo no Brasil e no mundo não podem ser lidos de forma isolada: eles traduzem tanto avanços científicos e legais quanto tensões sociais sobre o que significa ser diagnosticado. O aumento nos registros é, ao mesmo tempo, fruto de maior visibilidade e de mudanças nos critérios clínicos, mas também abre espaço para questionamentos sobre diagnósticos precipitados e seus efeitos práticos na vida das pessoas. Mais do que discutir se vivemos ou não uma “epidemia”, o desafio que se coloca é o de equilibrar precisão diagnóstica, acesso justo a direitos e políticas públicas efetivas, garantindo que a expansão de números não obscureça a singularidade de cada indivíduo e a complexidade do fenômeno.

Maria Lohmann é graduanda em Ciências Sociais da UNIFAL-MG. Com foco nos transtornos mentais e na medicalização da vida, seus estudos buscam compreender como a sociedade molda a percepção do “normal”, afetando os indivíduos e a própria sociedade. Fora do meio acadêmico, cultiva sua paixão pela música e pela produção, onde encontra novas formas de expressão e criatividade.

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