Dia 21 de setembro é o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência! Esse dia foi oficializado pela Lei 11.113, de 14 de julho de 2005 e, desde 1982, a data já era marcada por iniciativas dos movimentos sociais. O Jornal UNIFAL-MG conversou com a professora Silvia Ester Orrú, do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT), do campus Poços de Caldas, e com o pós-graduando Jhonatan Zati, sobre o tema. A entrevistada é pesquisadora e autora de diversos livros sobre inclusão. O entrevistado é egresso do curso de Letras da UNIFAL-MG e, atualmente, discente do mestrado em Educação da Universidade, orientado pela professora Silva Orrú. Na entrevista, orientadora e orientando abordam temas sobre a luta das pessoas com deficiência, preconceito e importância do tema na academia. Confiram:
Hoje é o Dia de Luta da Pessoa com Deficiência. São muitas lutas? Quais são os principais desafios enfrentados atualmente?
Jhonatan Zati: As lutas são incontáveis. Todos os dias nós encontramos desafios para atravessar uma sociedade que não está preparada para nos receber, mas acredito que, hoje, o principal desafio seja defender nosso espaço dentro da chamada educação regular.
Profa. Silvia Orrú: Penso que o principal desafio é entendermos que somos todos diferentes. Compreendermos que a diferença é de todos nós e não apenas da pessoa com deficiência (PcD) em relação a nós. Entendermos que a comparação entre seres humanos e aquilo que podem ou não fazer é uma limitação que nós teremos que suplantar de uma vez por todas, pois, no ato da comparação, alguém sempre sairá perdendo. Compreendermos que a diferença é própria da espécie humana! É um atributo de todos nós.
Nosso desafio maior é aceitar as pessoas e a nós mesmos como somos e, a partir daí, construir uma sociedade que aceite, compreenda, atue e viva em busca constante de uma amorosidade e respeito que alcance os níveis mais elevados de inclusão e justiça social para tod@s as pessoas.
[perfectpullquote align=”left” bordertop=”false” cite=”” link=”” color=”” class=”” size=””]As lutas são incontáveis. Todos os dias nós encontramos desafios para atravessar uma sociedade que não está preparada para nos receber, mas acredito que, hoje, o principal desafio seja defender nosso espaço dentro da chamada educação regular. Jhonathan Zati [/perfectpullquote]
Qual a importância do debate acadêmico sobre a inclusão de pessoas com deficiência nos mais diversos espaços sociais?
Jhonatan Zati: Há mais chances de uma discussão desde que a Universidade se faça aberta para receber pessoas de múltiplas deficiências. Não me refiro apenas à questão arquitetônica, mas que haja articulação para que a pessoa com deficiência participe ativamente da construção da instituição, que é feita pelo povo.
Profa. Silvia Orrú: As lutas do movimento pró-inclusão da pessoa com deficiência vêm se fortalecendo no Brasil, principalmente a partir da Constituição Federal de 1988, com o enfoque no princípio da igualdade de direitos. Ao longo dos anos, o acervo legislativo e documental acerca dos direitos da PcD muito se ampliou no que diz respeito às demandas gerais e também específicas, levando em conta as diversas e distintas singularidades dessas pessoas.
A academia se envolveu no debate acerca das temáticas da inclusão e construiu linhas de pesquisa nos cursos de pós-graduação, o que permitiu substanciar a discussão a partir dos estudos e pesquisas sobre políticas públicas, acessibilidade, tecnologias assistivas, metodologias de ensino, atendimento educacional especializado, tratamentos e intervenções no campo da saúde, além do levantamento de dados quantitativos e qualitativos para a produção de informações que possibilitam aperfeiçoarmos cada vez mais as ações sociais para o acolhimento da PcD.
Apesar dessa contribuição da academia, infelizmente, as universidades pouco mudaram para o acolhimento e oferecimento de apoio educacional adequado, segundo as demandas mais específicas dos estudantes com deficiência. Ainda muito se patina na manutenção de conservadorismos no ensino que se fundamentam na memorização, repetição, fixação e por avaliações inflexíveis que pouco levam em conta a subjetividade desses estudantes. Ainda há pouco investimento na oferta de tecnologia assistiva para os mais diversos contextos da vida estudantil da pessoa com deficiência. Ainda há um ranço de subestimação do potencial da pessoa com deficiência no espaço universitário e um apego, mesmo que velado, a dispositivos de exclusão, como é o caso das avaliações diagnósticas e laudos médicos que continuam sendo solicitados como uma forma documental para que o aluno comprove sua deficiência para receber apoio educacional especializado. Segundo a Nota Técnica nº 04/2014, publicada pelo MEC/SECADI, relatórios realizados por profissionais da saúde devem ser entendidos e utilizados tão somente para fins informativos e complementares, para que a escola e a universidade possam elaborar estratégias pedagógicas e de acessibilidade que favoreçam as condições de participação e de aprendizagem do estudante.
Nesse contexto, o debate acadêmico, embora tenha produzido significativa informação científica nas mais diversas áreas do conhecimento acerca da inclusão da PcD, ele precisa continuar, mas também precisa se materializar em ações concretas. Uma das melhoras maneiras de consolidar e materializar as políticas públicas de inclusão é chamando os próprios estudantes e demais pessoas da comunidade acadêmica com deficiência, para que eles mesmos sejam protagonistas nas discussões e implementações de ações inclusivas no espaço educacional. Penso que esse passo é muito importante para que tais discussões não fiquem restritas aos especialistas sobre inclusão, o que também é uma forma de manutenção de dispositivos excludentes.
Em que medida as políticas de luta e proteção à pessoa com deficiência se fazem necessárias para o âmbito educacional?
Jhonatan Zati: Estamos vivendo tempos de turbulência em muitos sentidos, e, quando isso acontece, o direito das minorias sociais fica comprometido, mas, para mim, tudo começa a partir da educação. Sem ela, não há perspectiva de mudança.
Profa. Silvia Orrú: Há de se dizer que seria uma ingenuidade nossa afirmarmos que um dia a exclusão se acabará na Terra. A história da humanidade tem nos mostrado que os ciclos de ganhos no que diz respeito aos direitos humanos são interrompidos pelo retorno de retrocessos e formas brutais de aniquilação da identidade do outro, de subjugo, marginalizações, exclusões e até genocídios. Hoje, no Brasil, temos o privilégio de já termos um arcabouço legislativo robusto de políticas públicas pró-inclusão. Ainda assim, falta-nos muitíssimo no que diz respeito à materialização dessas leis. De um dia para o outro, tudo pode mudar a depender do governo que se tem nos âmbitos municipal, estadual e federal. Neste momento, o movimento social pró-inclusão luta, bravamente, contra a implementação do Decreto Nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, que traz implicações negativas e de retrocesso no que diz respeito à inclusão educacional do estudante com deficiência. Os 30 anos de luta para avançarmos no direito à igualdade de direitos das PcD acabam por ser ameaçados e desiquilibrados por uma canetada que subscreve, obscuramente, medidas de retrocesso pela justificativa do assistencialismo e paternalismo os quais, na verdade, aumentam sobremaneira o tamanho da desigualdade social no país.
A Lei é necessária para conter abusos de quem não respeita, subestima ou marginaliza, propositalmente ou não, as pessoas em condições minoritárias.
[perfectpullquote align=”right” bordertop=”false” cite=”” link=”” color=”” class=”” size=””]A inclusão não é uma técnica com receituário ou manual para se praticar que, seguindo um ritual, dará sempre certo e todos serão felizes sem questões complexas para se resolver. A Inclusão é uma questão de Humanidade, que deve reger a nossa humanidade. Silvia Orrú[/perfectpullquote]
Como promover, na prática, a inclusão? Além disso, como enfrentar os preconceitos que ainda existem?
Jhonatan Zati: É muito difícil, porque as pessoas com deficiência têm necessidades particulares. Cada deficiência se faz em cada uma dessas pessoas. O importante é que a instituição ouça suas necessidades e contribua para a luta da implantação de políticas públicas que visem facilitar nossa qualidade de vida.
Profa. Silvia Orrú: A inclusão não é uma técnica com receituário ou manual para se praticar que, seguindo um ritual, dará sempre certo e todos serão felizes sem questões complexas para se resolver. A Inclusão é uma questão de Humanidade, que deve reger a nossa humanidade. Deixar o vício do conservadorismo no ensino e a formação homogênea de massa populacional para servir aos interesses do mercado é o primeiro passo para, de fato, fazer e deixar a inclusão acontecer.
Não se trata de tolerar a PcD do espaço educacional ou nos demais espaços sociais. Na verdade, trata-se de ACEITAR as pessoas como elas são, entender que somos todos, igualmente, DIFERENTES e, por isso, temos potencialidades e limitações diferentes, modos de aprender diferentes, modos de ser, pensar, viver, perceber e reagir ao mundo de maneiras diferentes.
Quando compreendemos que a diferença não é apenas do outro, mas é minha também, é de todos nós, isso muda a nossa maneira de agir, o nosso modo de perceber o outro, inclusive a forma de percebermos a nós mesmos. Investir e cultivar a diferença e as liberdades de ser e estar no mundo, com o mundo e com as outras pessoas, sendo diferentes, como valores humanos inegociáveis, é a grande chave para a promoção da inclusão e, consequentemente, para a eliminação de ações preconceituosas, discriminadoras, excludentes e marginalizadoras da PcD.
Na visão de estudante de pós-graduação, por que a inclusão se faz importante?
Jhonatan Zati: Se a Universidade é um recorte do universo, ela também precisa ser diversa. Somos muitos e muitas e temos muito a agregar nesse sentido. Ocupo um espaço de vantagem estando em um excelente programa de mestrado e sempre faço questão de tornar esse espaço mais receptivo para um grupo que não frequenta a Universidade, historicamente falando.
E na visão de professora, por que a inclusão se faz importante?
Profa. Silvia Orrú: Não mudaremos nada nas escolas, ou na universidade, ou nos demais espaços da sociedade, se as PcD não estiverem presentes no cotidiano educacional. O ser humano costuma se condicionar a sua zona de conforto, a fazer o que é melhor para si, e isto é uma constante no padrão social hegemônico. A presença do estudante com deficiência na escola e na universidade nos move a repensar nossa ação docente. Movem-nos a sair de nossa zona de conforto e a procurar novas possibilidades de aprender a compartilhar saberes os quais alunos com e sem deficiência podem aprender.
A presença da PcD na escola e na universidade nos ensina a ser seres humanos melhores, pois somos beneficiados com um aprendizado vital sobre convivência e aceitação humana mútua. Aprendemos que temos muito a aprender sobre como melhorar a vida na Terra e a transformar o mundo em um lugar melhor para todas as pessoas viverem. Aprendemos muito sobre nosso preconceito, sobre a limitação que temos em generalizar quase tudo em nosso redor e, assim, desconsiderar o potencial de aprendizagem e de vida de todas as pessoas.
A inclusão é muito importante para que professores ainda arraigados a uma visão reducionista do potencial humano percebam que uma escola, que uma universidade, só é de excelência quando ela acolhe a todas as pessoas, sem distinção.
Como mãe que sou, sempre fiz questão de matricular meu filho em escolas que, visivelmente, favoreciam uma educação na perspectiva inclusiva. Isso fez toda diferença na constituição de meu filho que, assim desejo, torne-se uma pessoa generosa, acolhedora, avesso às práticas excludentes que nos desumanizam e machucam tantas pessoas.
Sem dúvida, as PcD têm nos demonstrado, por meio dos estudos e pesquisas realizadas no espaço acadêmico, que o lugar delas é onde quiserem estar. Não são elas que devem mudar de lugar ou ser segregadas, mas, sim, somos nós que devemos mudar e transformar nossa sociedade em um lugar no qual todas as pessoas possam estar e viver com dignidade humana.
A educação libertária, recordando Paulo Freire, que completaria 100 anos em 19/09, é aquela na qual educamos para a autonomia e para a emancipação cidadã. A escola e a universidade são os locais destinados a educar as pessoas para que sejam protagonistas de suas próprias escolhas, de suas próprias histórias. É muito importante que nos conscientizemos disso, pois, como professores, somos a ponte para que as PcD ocupem cada vez mais os espaços sociais, o mundo do trabalho, a partir da qualificação profissional. Que elas também ocupem lugares de fala como protagonistas, inclusive, conquistando espaços como professores, para que outras crianças, adolescentes, jovens e adultos com deficiência se empoderem, e para que os demais que, no momento, não convivam com uma deficiência em si mesmos, aprendam que a deficiência não deve ser supervalorizada em detrimento do potencial humano que todos temos.
Você já sofreu algum tipo de preconceito por ser uma pessoa com deficiência?
Jhonatan Zati: Muitas vezes. Do capacitismo bem-intencionado, sem a intenção de ofender, às formas mais explícitas de discriminação.
Na escola e na universidade, qual é o maior desafio?
Jhonatan Zati: Neste momento, o de manutenção do direito ao acesso à educação básica regular de qualidade. É necessária a mobilização de toda a comunidade para que não retrocedamos nos direitos adquiridos por aqueles e aquelas que vieram antes de mim.
Sobre os entrevistados
Jhonatan Zati
Graduado em Letras pela Universidade Federal de Alfenas (2018). Como graduando, concluiu uma pesquisa de iniciação científica financiada pela agência de fomento PROBIC em que pesquisou, à luz das teorias do Romance Histórico e da Teoria Feminista da Literatura, as “Relações entre a Literatura e a História em A casa das sete mulheres, de Letícia Wierzchowski”, orientado pela Prof.ª Dr.ª Fernanda Aparecida Ribeiro (UNIFAL-MG). Para o trabalho de conclusão de curso, com a orientação do Prof. Ms. Ronaldo Auad Moreira (UNIFAL-MG), concluiu a monografia “Imagem e significado em SEX, de Madonna”, com base nos estudos da Semiótica Peirciana. Hoje, faz parte do Programa de Pós-Graduação em Educação, na modalidade Mestrado Acadêmico, da Universidade Federal de Alfenas. Sob orientação da Prof.ª Dr.ª Sílvia Ester Orrú, desenvolve o projeto “A educação como ferramenta para a emancipação das pessoas privadas de liberdade”, fazendo parte do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Inclusão (LEPAI) da Universidade de Brasília.
Sílvia Ester Orrú
Graduada em Pedagogia, pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional, mestre e doutora em Educação, com pós-doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). É professora colaboradora na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Interessa-se por estudos e pesquisas com enfoque na diferença como valor humano: a coexistência da inclusão/exclusão na contemporaneidade; mecanismos de exclusão na escola e sociedade; processos dialógicos inovadores e inclusivos para uma educação democrática; inclusão e diferença no contexto escolar e universitário; direitos humanos; direitos das mulheres; inclusão, diferença e direitos sociais na América Latina. É autora de livros, capítulos e artigos em periódicos nacionais e internacionais. É coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Inclusão (LEPAI).