Pronto-socorro filosófico

Atualizado em 5 de fevereiro de 2024 às 18:25

O escritor norueguês Jostein Gaarder propôs a si mesmo, com O mundo de Sofia (1991), um duplo desafio: contar uma história imaginária e, dentro dela, resumir toda a filosofia ocidental. Saiu-se melhor na parte mais importante, a do resumo; realmente, seu livro apresenta um verdadeiro pronto-socorro filosófico para leigos nessa matéria ao selecionar, com didatismo e economia, os maiores problemas do pensamento desde os filósofos pré-socráticos até a metade do século XX. É verdade que “pula” nomes importantes como Schopenhauer, Nietzsche e Wittgenstein, mas vale por uma boa apresentação da tradição filosófica. Quanto ao aspecto ficcional…

A história de Sofia Amundsen não passa de um veículo para o verdadeiro assunto, mas, a partir da metade do livro, a narração se embanana bastante, principalmente devido à tentativa de construir um contraponto entre as situações de Sofia e de seu duplo, outra garota norueguesa de 15 anos cujo pai, como o seu, vivia ausente devido à natureza do trabalho exercido. Um primeiro efeito bem visível desse descaminho é o aumento das intervenções puramente fáticas, do tipo “Acho que entendo o que você quer dizer”, nas quais Sofia se dirige a seu interlocutor, Alberto Knox. Ele também é um duplo, aliás quase homônimo, do pai de Hilde, a outra garota.

Essa armação até que funciona bem na primeira metade do romance, não chegando a prejudicar o objetivo principal. Ocorre que, quanto mais a narrativa se aproxima de seu desfecho, mais casuísmos vão sendo necessários para eliminar as pontas soltas do enredo. Assim, do ponto de vista ficcional, O mundo de Sofia resulta bastante manco.

Para quem, cheio da boa vontade de iniciar-se na filosofia, fechar os olhos a esse defeito, a leitura pode ser um grande acontecimento existencial. Dificilmente haverá lugar melhor para compreender as grandes questões do pensamento ocidental, tratadas em misteriosos envelopes que certo dia a protagonista começa a receber. A mãe de Sofia, devido ao comportamento estranhável da filha, que começa a ficar cheia de mistérios, chega a sondá-la sobre a possibilidade de ela estar namorando um usuário de drogas. Mas o “namorado” era, de fato, um cinquentão que resolvera contemplar a garota com um curso completo de filosofia por correspondência. Mais adiante, as aulas começam a ser presenciais, e assim continuam até o final do livro.

A viagem de Sofia começa como os filósofos pré-socráticos, ou seja, anteriores a Sócrates (470-399 a. C.), que se preocuparam em oferecer explicações racionais para os fenômenos da natureza – sem o recurso aos deuses, que havia caracterizado a cultura grega até então, como se vê nas demasiado humanas quizílias entre os habitantes do Olimpo reportadas por Homero na Ilíada, poema épico do século IX a.C. O preceptor de Sofia tem, por exemplo, o cuidado de perguntar a ela “por que o Lego é o brinquedo mais divertido” antes de enviar sua aula sobre Demócrito, aquele pensador que lançou a ideia do átomo, tão importante até hoje para nossa compreensão da matéria (embora o nome não mais se justifique, pois átomo significa “indivisível”). É pena que, já nessa primeira parte do curso, Alberto Knox tenha excluído os brilhantes paradoxos de Zenão de Eléia (490-430 a.C.) e a genial ideia que teve Eratóstenes (276-194 a.C.): ele calculou a circunferência do planeta com espantosa precisão usando apenas a sombra de uma haste fincada no chão – errou por apenas 308 quilômetros, mas desde esse evento se tornou incontestável o fato de a Terra não ser plana, o que teve grandes consequências em toda a história da inteligência humana e, como pudemos observar recentemente, também na da estupidez.

Seria demais, é claro, exigir que um curso como o de Alberto Knox fosse completo. E Sofia segue aprendendo a história do pensamento grego, entendendo como a ideia de prescindir dos deuses influenciou o estudo da história, com Heródoto e Tucídides, e a medicina (mas por que transcrever na integra o juramento de Hipócrates?), resultando em intuições incrivelmente corretas e chutometrias inqualificáveis que chegaram até o século XX.

Em seguida virá Sócrates com sua maiêutica (“partejar” a verdade por meio de perguntas), suas ironias e a primeira tentativa filosófica de estabelecer normas universais de conduta, tudo decorrendo da invenção da democracia em Atenas e de uma consciência coletiva sintetizada na lapidar frase de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Nessa parte do livro se define bem, por contraste, a tarefa da filosofia:

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(…) a humanidade está diante de questões importantes, para as quais não é fácil encontrar

uma resposta adequada. E então abrem-se duas possibilidades: podemos simplesmente

enganar a nós mesmos e ao resto do mundo como se soubéssemos de tudo o que vale a

pena saber, ou então podemos simplesmente fechar os olhos para essas questões

importantes e desistir para sempre de ir em frente. Isso divide a humanidade em duas

partes. De um modo geral, as pessoas ou acham que estão cem por cento certas, ou

então se mostram indiferentes.

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Na esteira de Sócrates chega Platão, seu discípulo, que quis, com uma crença excessiva na razão (a mesma de tantos pensadores que vieram depois), superar as contingências do mundo e fundar o pensamento além do que podemos perceber com nossos sentidos. Aluno de Platão, Aristóteles inverte completamente  a metafísica de seu mestre e praticamente funda o método científico – depois aperfeiçoado por Galileu, Bacon e Newton, entre outros – por meio de uma lógica unificadora da qual surge a ideia de um único deus, que serviu como luva, a partir da helenização do cristianismo, para a justificação teórica dessa crença judaica que se tornou a segunda grande religião monoteísta, mas a primeira em número de adeptos e em influência na cultura ocidental.

Enquanto vai recebendo envelopes com perguntas intrigantes e novas aulas, Sofia começa a comportar-se como filósofa: formula seus próprios problemas, percebe que nunca se havia dado conta do quão ignorantes somos etc. Uma das melhores aulas que ela tem é aquela sobre o período helenístico, mais ou menos coincidente com o surgimento e a primeira expansão do cristianismo, época que soterra o mundo antigo e abre as portas da Idade Média, na qual brilhariam os sistemas de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino, ambos importantíssimos por terem reproposto, respectivamente, as filosofias de Platão e de Aristóteles à luz da fé cristã.

Então, chega o Renascimento, com descobertas astronômicas que redimensionam o lugar do ser humano no Cosmos e promovem a ligação definitiva entre filosofia e ciência – a partir daí, as especulações religiosas começam a perder sua importância para a objetividade crescente do método científico.  E, nessa trilha, seguem-se Descartes, Spinoza, o empirismo inglês e o Iluminismo, tudo desembocando nos “avós” do pensamento moderno Kant, Hegel e Kierkegaard, para, em seguida, resultar num fechamento apressado às portas do século XX: Marx, Darwin, Freud e “nosso próprio tempo” – que praticamente se resume ao existencialismo.

No último terço de O mundo de Sofia, torna-se evidente certa exaustão. Afinal, deve ter sido muito grande o esforço do escritor, que com essa obra ganhou (merecidamente) notoriedade mundial e, na década seguinte, produziu mais de uma dezena de títulos. Tanto o esforço de resumir a filosofia como o de resolver a equação narrativa num todo ao mesmo tempo coerente e capaz de manter o interesse do leitor. É pena que não tenha podido caprichar mais, mas também é certo que a versão aprimorada do romance resultaria num volume muito maior – e ele já passa das 500 páginas.

Título: O mundo de Sofia
Autor: Jostein Gaarder
Gênero: Filosofia
Ano da edição: 1995
ISBN-10:‎ 8571644756
ISBN-13: 978-8571644755
Selo: Companhia das Letras

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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