Escolher Água Funda (1946) de Ruth Guimarães, é mais do que falar sobre um livro: é resgatar uma voz que o tempo tentou esconder e que aborda questões como racismo, preconceito e a luta por identidade em uma sociedade marcada pela desigualdade racial. Publicado em 1946, o romance, considerado regionalista, marcou a estreia de uma das primeiras mulheres negras publicadas no Brasil, e mesmo assim, por muito tempo, o nome de Ruth ficou à margem da história literária. Para o jornalista e ensaísta Tom Farias, que foi o responsável por uma das homenagens a Ruth Guimarães em seu centenário, comentou que a autora foi “invisibilizada pela academia e pelo mundo literário.”
Deste modo, abordar sobre a sua obra agora, durante as atividades voltadas para a valorização da memória, da cultura e das contribuições de autores negros ou de autoras negras tendo como foco a formação da sociedade brasileira, representa um gesto de valorização, divulgação e de escuta de uma autora que soube transformar o cotidiano do interior em uma literatura viva, cheia de ritmo, fala e sentimento. Em um depoimento fornecido à BBC News Brasil, em novembro de 2020, a escritora Ana dos Santos, pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), disse o seguinte sobre Ruth Guimarães:
A trajetória dela é um exemplo a ser seguido no sentido da segurança e autoconfiança no que escrevia e, tendo essa certeza, mostrou sua escrita para quem estava receptivo a novas descobertas na literatura, o que se pretendia na época: uma escrita focada na identidade nacional, no caso, a identidade negra.
A história de Água Funda (1946) se passa entre o Vale do Paraíba, localizado no estado de São Paulo, entre as Serras do Mar e da Mantiqueira, e o sul de Minas Gerais e o Rio de Janeiro, um cenário que me é muito familiar por ser oriunda daquela região, e também bastante representativo pelas paisagens, os costumes, as expressões e até o jeito de contar as coisas. Dessa forma, Ruth consegue transformar um ambiente rural, muitas vezes visto como “menor” pela crítica tradicional, em um espaço de sabedoria, emoção, tradição e memória. A própria autora, numa entrevista concedida ao Museu Afro Brasil, em 2007, declarou:
Eu conto a história da roça, de gente da roça, do caipira. Eu também sou caipira, modéstia à parte. Eu não me importei muito se havia uma tendência, ou se havia uma inclinação para contar a história do preto; como eu também sou misturada, o meu livro é misturado. Como eu sou brasileira, nesse sentido de brasileiro todo um pouco para lá, um pouco para cá, o meu livro também é assim, um pouco para lá, um pouco para cá.
Água Funda (1946) é uma obra composta por várias narrativas entrelaçadas que vão se cruzando no decorrer do livro. O romance se divide em duas fases. Na primeira, ambientada ainda no período escravocrata, é marcada pela presença da personagem Sinhá Carolina, dona da fazenda Olhos d’Água, uma figura impiedosa e severa que vive os conflitos de um mundo em transformação. Sua trajetória abrange desde a juventude, passando pelo casamento, até a viuvez. Após vender suas terras, ela se envolve com um jovem capataz que a abandona, levando seu dinheiro, o que a conduz à loucura e ao desamparo. Sua história é marcada pela decadência e pelo desatino, que refletem a própria ruína do sistema que ela representa.
Já na segunda parte, décadas depois, a fazenda se transforma em uma usina administrada por estrangeiros, e surge a figura de Joca, personagem trabalhador da região, um homem simples que é marcado pela dureza da vida. É nesse cenário que ele conhece e contrai núpcias com Curiango, sobrinha-neta de Carolina. O amor entre os dois, porém, é atravessado por surtos, crenças e maldições, revelando a mistura entre o real e o fantástico que permeia todo o livro. Joca, em sua busca pela lendária Mãe de Ouro, figura do folclore brasileiro, descrita como uma bola de fogo ou uma linda mulher loira de vestido branco, também sucumbe à loucura.
Dessa maneira, Água Funda (1946) é uma obra que também se caracteriza por abordar temas como a modernização do espaço rural, as crendices populares e o folclore brasileiro, além das raízes escravocratas que continuam permeando a sociedade brasileira mesmo após a abolição. O livro revela como a exploração não termina com o fim da escravidão, apenas muda de forma. Os descendentes dos negros escravizados continuam sendo os principais trabalhadores das fazendas e usinas, submetidos a condições precárias e desiguais. A liberdade, nesse contexto, revela-se apenas uma nova face da mesma estrutura de dominação, assim como se enfatiza na epígrafe da obra:
Estas coisas aconteceram em qualquer tempo e em qualquer parte. O certo é que aconteceram. E, como sempre se dá, ninguém apreendeu nada do seu misterioso sentido.
O próprio título da obra “Água Funda” é mais do que uma metáfora: ele representa o que há de mais profundo nas experiências humanas. Assim como as águas escuras de um rio, a narrativa de Ruth Guimarães guarda segredos, memórias e sentimentos que não se veem na superfície. O livro fala de um Brasil que nem sempre aparece nas páginas da literatura canônica, um Brasil de vozes populares, de mulheres fortes, de crenças misturadas e de uma sabedoria que vem da terra.
A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada.
A autora Ruth Guimarães transforma o simples em poético. Sua linguagem é marcada por expressões regionais, pela musicalidade da fala caipira e pela força da oralidade. O que poderia ser visto como “erro” ou “fala errada” vira, em suas mãos, arte e história. Ela faz da linguagem do povo uma forma legítima de contar o mundo, e, ao fazer isso, questiona a própria ideia de quem pode ou não ser considerado “literário”. Água Funda (1946) é uma resposta direta ao cânone que, durante tanto tempo, ignorou as histórias contadas fora dos grandes centros urbanos.
Enquanto mulher negra, Ruth escreveu em um tempo que pouco acolhia vozes como a dela. Mesmo assim, construiu uma obra madura, poética e original que desafia, até o momento presente, as fronteiras de gênero, classe e espaço. Sua escrita fala de amor, de destino, de dor e de permanência. Portanto, ler hoje Água Funda (1946) representa mergulhar em uma literatura que nasce das margens, mas que também procura desvendar sua identidade e suas raízes. De forma significativa, ela mesma chegou a dizer: “A história negra está por fazer, a literatura negra está por fazer, a poesia está por fazer.”
Enquanto uma leitora valeparaibana, sinto e penso que Ruth Guimarães escreve também sobre nós, sobre nossas famílias, nossas falas, nossas histórias de infância e as memórias que foram guardadas em silêncio. Por isso, essa leitura, além de ser essencial, representa um reencontro com a terra, com a linguagem e com as vozes culturais que formam quem somos. Antes de tudo, Água Funda (1946) é um mergulho na alma do povo brasileiro, uma alma que, por acréscimo, é negra, feminina e popular, e que ainda precisa ser mais lida, lembrada, difundida e celebrada.
E assim, da observação da natureza aos impulsos e instintos de uma comunidade, Ruth Guimarães ainda traz imagens como esta:
Já viu seriema, no brejo, em dia calmo? Fica horas apoiada num pé. A gente olha, parece estatueta. Não se mexe. Não se cansa. Não espia pra lá e pra cá. A água parada, embaixo, e o céu, em cima, é tudo um céu. E ela fica, fica, fica… Esqueceu da vida só de ver aquela beleza de verde e de azul e alguma flor pintando brejo. A gente não é assim, não. Se está bem, procura jeito de ficar melhor. Não é da natureza humana ficar parada, olhando coisas paradas.
Sobre Ruth Guimarães

Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, SP, no Vale do Paraíba, em 1920. Aos dez anos publicou seus primeiros versos em jornais locais. Órfã aos dezessete, radicou-se em São Paulo em 1938, onde cursou o magistério na Escola Normal Caetano de Campos e depois ingressou como funcionária concursada no IPASE. Conheceu Mário de Andrade em 1943, que a iniciou nos estudos de folclore, e frequentou o círculo literário chamado “Grupo da Baruel”. Em 1946 lançou seu primeiro livro, o romance Água funda, com grande sucesso. Ingressou em seguida na USP, onde se formou em Letras Clássicas em 1950, mesmo ano de seu segundo livro, Os filhos do medo, ampla pesquisa sobre o papel do diabo na tradição popular brasileira. Escreveu crônicas e artigos para diversos jornais e revistas, participou do Conselho Estadual do Folclore, foi professora da UNIFATEA e escreveu outros de livros, de ficção e não ficção, como Lendas e fábulas do Brasil (1963) e Dicionário da mitologia grega (1972), além da peça Romaria (com Miroel Silveira). Traduziu obras de Balzac, Dostoiévski e Alphonse Daudet, entre outros, e também O asno de ouro, de Apuleio. Em 2008 foi a primeira escritora negra eleita para a Academia Paulista de Letras. Faleceu em Cachoeira Paulista, em 2014, aos 93 anos.

Título original: Água Funda
Autora: Ruth Guimarães
Gênero: Romance
Editora: Editora 34
Ano: 1946
Páginas: 200
Onde encontrar: Na Editora 34 ou em livrarias digitais

Thays Rosendo Silva nasceu em 29 de março de 2005, em São José dos Campos, São Paulo. É graduanda do sexto período do curso de Letras: Línguas Estrangeiras da UNIFAL-MG e bolsista do projeto de extensão Ler, contar e escrever: ações de linguagem e encantamento, tendo sido orientada nos Seminários de Pesquisa I e II pelo professor Ítalo Oscar Riccardi León. Atua como redatora nas empresas Nova Concursos, Editora Solução e Apostilas Opção. Tem interesse em literatura, linguagem e educação.
* Esta resenha foi selecionada em chamada para publicação nesta coluna ‘Literatura pelas Bordas’ durante o Mês da Consciência Negra. O texto passou pela supervisão da curadoria, presidida pelo professor Ítalo Oscar Riccardi León, do curso de Letras.














