Maneira eficaz de desqualificar alguém num debate é atribuir-lhe a condição de louco. Mas, apesar de a loucura e a rebeldia poderem coincidir no mesmo indivíduo incômodo, há uma diferença marcante entre elas: o rebelde discorda do mundo tal como é, o louco chega a negá-lo. Talvez a distinção seja importante em certos debates contemporâneos, os quais se processam em meio a uma inflação de discursos que nada fica a dever ao seu correlato econômico: o excesso de palavras, como a oferta excessiva de moeda, acaba por reduzir seu valor, gerando uma corrida pela remarcação de preços e conceitos. Esta resenha se assume como um sintoma disso.
Na mesma chave “inflacionária” se podem colocar muitas discussões, especialmente as promovidas por meio da internet, que, para quase todos os efeitos, tem sido assumida como substituta do “antigo” mundo real. Não é o caso, como diz Sírio Possenti em seu ensaio “O gênero e o gênero”, de negar a existência de um problema quando tantas pessoas afirmam que ele existe; a partir dessa ressalva, o professor de Linguística da UNICAMP expõe seu ponto de vista no texto que abre a sequência da qual é feito o volume Linguagem “neutra” – Língua e gênero em debate.
Possenti, um interessante caso de especialista em humor que não é visto com muita frequência sorrindo por aí, soa a nota de afinação ao debate – felizmente – logo no princípio. Primeiro, reconhece a legitimidade das posições de que discorda, passando a desmontá-las com argumentos fundados em seu inegável saber. Seria ótimo que a regra fosse assim.
O livro reúne nove textos, assinados, na maioria, por gente do meio acadêmico. Seus organizadores são dois professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A publicação tem o mérito de, num conjunto onde sobressai a posição favorável às propostas em exposição, hoje tão influentes na imprensa e na academia, permitir a expressão de opiniões discordantes, sendo a de Possenti e a de Raquel Meister Ko. Freitag, que trabalha na Universidade Federal de Sergipe, as mais consistentes. Freitag encerra seu texto defendendo “o direito de ter direito a escolher pronomes” e reafirmando sua tese, exposta na introdução, de que a neutralidade de gênero implicaria novo apagamento e marginalização do feminino. Faltou dizer, talvez, que a ideia de neutralidade não é neutra: alinha-se a interesses políticos bem reconhecíveis.
Predomina, no volume, a ideia de que neutralizar o gênero seria, indiscutivelmente, um progresso para as sociedades. A maioria dos autores – alguns deles nem tentam esconder que são mais militantes políticos do que estudiosos de algum modo preocupados com a isenção – procura nos estudos linguísticos o argumento que dê a sua proposta o conveniente verniz científico. Ao menos, nenhum utiliza a expressão lugar de fala, que valeria por uma profissão de desapreço à noção de distanciamento crítico, na qual reside a medula do método científico desde Copérnico. Entretanto, vários forçam a barra ao usar como petição de princípio expressões do tipo “movimentos sociais progressistas” e “linguagem solidária e respeitosa”, as quais estão a indicar, respectivamente, um hegelianismo de terceira mão e um complacente autoelogio: nem todas as pessoas se sentirão respeitadas e acolhidas pela linguagem “neutra”, o que reenvia o problema a seu ponto de partida, pois há uma tendência a transformar as antigas maiorias em novas minorias – conquanto estranhamente majoritárias, a não ser que se pretenda, na contramão, “desneutralizar” a matemática e a estatística.
A principal questão colocada por Possenti é relativa ao suposto caráter masculino do gênero neutro. Ele explica, com vagar e didatismo, que se trata, antes, da marcação ou não do gênero: as palavras terminadas em o, por um princípio de economia conatural ao idioma, assinalam no português os nomes que não são femininos, e assim o feminino seria marcado, enquanto o masculino, não. Algo muito semelhante ao que ocorre com os cromossomos que definem o sexo de um embrião, e por sinal a Biologia está ausente desse debate no qual se fala em “diversidade de corpos” quando o problema é de fundo mental e social. Do fenômeno objetivo, parecem muitos militantes-teóricos terem fantasiado que certo dia, em cada um dos países onde se falam idiomas nos quais ele ocorre, houve uma assembleia machista conspirando pelo apagamento social e político das mulheres, com o corolário, bem posterior, da exclusão simbólica de homossexuais, transexuais e pessoas que se definem como “não binárias” ou alguma variante do tipo.
Seria absurdo negar que o Brasil é uma sociedade machista. Afinal, fomos colonizados por um país católico, e toda religião monoteísta é intrinsecamente sexista, pois as tradições apagaram, por exemplo, a noção plural implicada no nome Elohims, referente a Deus no texto original do Gênesis. O poeta Haroldo de Campos documenta isso na sua linda tradução do primeiro livro bíblico. A propósito, parece que ninguém se preocupa, em Linguagem neutra, com as implicações estéticas de operações que visem “corrigir” a língua, pois não há mostra de incômodo com as ressonâncias um tanto risíveis de um termo como “cuir”, parente próximo de “membra”.
Do mesmo grau de absurdo é a negação do racismo: a economia da colônia portuguesa baseou sua acumulação primitiva no trabalho escravo, por definição injusto e violento. É também inquestionável que as marcas de tais processos históricos persistem em elementos estruturalmente arraigados na sociedade brasileira, os quais têm sido atacados, nas últimas décadas, por políticas que buscam promover a compensação ou a reparação de injustiças e crueldades praticadas ao longo de séculos. Ainda mais: incorre em negacionismo explícito quem discordar da transferência, também continuada, do racismo e do machismo para o plano simbólico. Daí a querer criar um esperanto ideológico ao gosto de pequenos grupos e impô-lo ao conjunto da sociedade, vai uma distância tão grande quanto o tempo histórico de gestação dessas iniquidades sociais. O que se incrustou no edifício social durante séculos não pode ser, da noite para o dia, lavado com água e sabão.
Admitida a doença, talvez o remédio proposto é que seja um pouco forte demais, podendo fazer mais mal do que bem ao paciente. Assim, determinados episódios mencionados ao longo do livro evidenciam o ridículo a que conduzem raciocínios simplistas desenvolvidos a partir do repúdio a assimetrias de poder consideradas injustas. Um deles é citado por Possenti a propósito da suposição de que a palavra homossexualismo seja morfologicamente pejorativa e remeta à patologia:
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Quem estudou um pouquinho de grego sabe que o elemento “ismós” (que deu origem ao
nosso “-ismo” pode ser usado para compor palavras abstratas de qualquer categoria:
magnetismo, batismo, ciclismo, realismo, dadaísmo, otimismo, relativismo, galicismo,
teísmo, cristianismo, anarquismo, aforismo e jornalismo. Pensando bem, esta última
talvez encerre algo de mórbido, mas não recomendo que, para purificar a atividade, se
adote “jornalidade”.
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Há, entre os proponentes da neutralização do gênero, quem invoque características do mandarim e do basco, línguas muito difíceis e longínquas para que possam servir de parâmetro a uma tentativa de “intervir” no português. Atenção para o verbo entre aspas: existem os que defendem intervenções político-legislativas para promover o que definem como “demanda social”, embora à primeira vista pareça ser reivindicação de grupos minoritários – que, sim, constituem parcelas da sociedade a levar em conta, mas às vezes parecem atribuir a si mesmos a posse de uma verdade da qual está ignorante qualquer pessoa que discorde deles. Ou seja, invalidam a razão alheia, incorrendo numa espécie de totalitarismo teórico. É digno de nota que, em nome da democracia, desconsiderem a metade evangélica do Brasil (a soma, se não estiver estimada com excessivo otimismo, inclui já a parcela considerável do catolicismo que pratica uma contrarreforma às avessas) que vê o mundo por lentes de cores muito diferentes – ultimamente, verde-oliva. Aí é que voltamos ao problema da inflação.
Assim como a hiperinflação da República de Weimar, com seus efeitos traumáticos sobre a sociedade alemã, esteve na gênese do nazismo, pode ser que a inflação de discursos “progressistas” esteja na base do recente surto de fascismo que visou destruir a ordem democrática. Certas tendências que se consideram de esquerda, negacionistas à sua própria maneira, têm significativas afinidades com o radicalismo da “intervenção” – em franco progresso na Argentina, assim como a inflação econômica stricto sensu – proposta por alguns dos autores do livro. São grupos que simplesmente não conseguem lembrar, por exemplo, que os militares estavam quietinhos em seus quartéis antes de certo “guia genial” (apelido de Stálin que a ele foi emprestado pelo jornalista Elio Gaspari) impor a seu partido e ao eleitorado de centro-esquerda uma ex-guerrilheira como sucessora, naquele tempo em que elegeria até um poste, dando tudo, afinal, no que deu. É fora de questão que houve um golpe parlamentar em 2016, mas também é certo que ele foi oferecido de bandeja à direita rentista e ressentida.
Linguagem “neutra” é um livro importante. Contém as informações essenciais à discussão do problema – que enuncia, de maneira exemplar, já pelas aspas do título. O que não se pode ter, no entanto, é a ilusão de que alguns de seus autores não estejam fazendo mais propaganda política do que discussão científica. Os dois últimos parágrafos do último ensaio, a cargo do então doutorando (a edição é de 2022) Samuel Gomes de Oliveira, deixam a nu a simulação de imparcialidade ao dizer que “Não há qualquer problema em apresentar o assunto como uma questão aberta” para os alunos de uma escola, pois não cabe ao professor “tomar partido sobre uma ou outra proposta de linguagem neutra”. Ou seja, de qualquer modo a postulação de que é necessário debater o tema implica adotar “uma postura inclusiva e respeitosa que deve ser soberana no espaço escolar”. A verdade está dada, o que se discute é como praticá-la. É a proposta transparente de uma nova ortodoxia, pela qual um dia poderão ser silenciados, em nome do combate ao silenciamento, todos os discordantes.
Além do exame da cientificidade duvidosa de diversos argumentos de que lançam mão os defensores da “neutralização” do gênero na língua, parece que não faria mal à discussão ampliá-la para além dos limites de uma única área do conhecimento. Afinal, tais argumentos são, muitas vezes, tributários de outras áreas, como a antropologia e a psicanálise.
Quanto a esta, bastaria a leitura de O mal-estar na civilização (1929). Nesse livro tão brilhante quanto conciso, Freud expõe sua muito bem fundamentada teoria de que a civilização consiste numa barganha: abrimos mão, o tempo todo, da gratificação de nossos instintos – que se expressam, é claro, também como vontades conscientes – em nome da coexistência pacífica com os semelhantes. É uma evidência bastante sólida em oposição aos propagandistas dessa “sublevação dos particularismos” (para falar como Octavio Paz), pois deixa claro que jamais será possível estabelecer a paz numa cultura em que todos os grupos, por mais minoritários que sejam, se julgam no direito sagrado de impor à coletividade sua visão de mundo.
No campo específico da teoria política, talvez seja interessante revisitar o clássico estudo de Perry Anderson, Considerações sobre o marxismo ocidental (1976). Sendo bem discutível que boa parte do ativismo identitário possa ser considerado de esquerda, valeria a pena ter em conta a análise do pensador britânico sobre as razões pelas quais os movimentos radicais, vendo-se impotentes (e desmoralizados por fenômenos como Stálin e Pol Pot) para fazer a Revolução, escolheram, no pós-guerra, migrar para o campo cultural, onde pelo menos não seriam obrigados a enfrentar tanques e fuzis que não fossem apenas simbólicos.
Título: Linguagem “Neutra” – Língua e gênero em debate
Organização: Fábio Ramos Barbosa Filho e Gabriel de Ávila Othero
Gênero: Língua e Gramática
Ano da edição: 2022
ISBN-10: 8579342546
ISBN-13: 9788579342547
Selo: Parábola Editorial