ADPF 442: breves considerações sobre interrupção voluntária da gravidez, assimetrias sociais e interseccionalidade

Cínthya Bastos Ferreira¹

ADPF 442: breves considerações sobre interrupção voluntária da gravidez, assimetrias sociais e interseccionalidade

Inicio esse texto com uma singela indicação-pedido. Ouça, na ordem em que desejar, “Artemísia”, da banda goiana Carne Doce, e “Ciranda do Aborto”, da cantora, compositora e professora Juçara Marçal. Sinta. Pense. Depois, siga a leitura.

A ADPF 442, que pauta a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até a décima segunda semana de gestação, encontra-se na ordem do dia, mobilizando o debate público em configurações não raro maniqueístas e/ou reducionistas. Antes de uma breve incursão nestas configurações, cabe a resposta à pergunta: mas, afinal, o que é uma ADPF? E esta é a sigla para Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, um mecanismo jurídico que atua tendo em vista a proteção dos princípios basilares presentes na Constituição. Neste caso, em particular, compreende-se que a criminalização do aborto induzido infringe direitos fundamentais, como dignidade e liberdade humanas, entrando em dissonância com o previsto em nossa jurisdição e legitimando, por conseguinte, uma interferência legal a fim de solucionar a violação detectada.

A temática do aborto, embora não raro seja marcada pela ativa evitação, posto que tabu (com suas regulações, censuras e interditos baseados em sistemas de crença variados), é de extrema complexidade, por consubstanciar aspectos científicos (biomédicos, por exemplo) e culturais atrelados à gênero, raça e classe. Em outras palavras, tem-se que dizer de aborto é dizer de corpos humanos passíveis de parir, corpos situados que tem seu útero transformado em território político. Corpos que historicamente foram associados à maternagem como destino e indício de sua própria natureza ou essência. Corpos que gestam, obedecem e cuidam. Dizer de aborto é dizer também de assimetrias profundas no que tange à ocupação, à renda e às condições gerais de vida, pois se o gênero nos une, os processos de racialização e de pertencimento de classe nos distingue em termos estruturais e singulares.

Neste cenário, a interseccionalidade (COLLINS, BILGE, 2021) como categoria analítica e práxis crítica torna-se de suma relevância, uma vez que chama a atenção para os múltiplos vetores que nos conformam a nós e a realidade, sendo estes, a um só tempo, fonte de identidade, de opressão e de resistência. São vetores que não se encontram isolados, mas imbricados e interdependentes em relação aos demais: coproduzidos por e coprodutores de relações sociais. Sendo assim, interseccionalidade não é sobre soma de especificidades, é sobre compreensão de dinâmicas de poder em movimento, em toda sua pluralidade contraditória. Por isso, auxilia-nos a pensar dialeticamente unidade e diversidade, inclusive no que diz respeito ao aborto.

Antes de adentrar nos meandros que envolvem a porosidade entre unidade e diversidade, cabe a problematização da polarização a que se assiste quando se versa sobre a interrupção voluntária da gravidez. Por vezes, no discurso social corrente, coloca-se uma falsa oposição entre defender ou não defender a vida no bojo dos debates sobre o direito de decidir os rumos da própria condição reprodutiva. Em um primeiro momento, seria necessário precisar o que se designa vida e, mais do que isso, o que se designa pessoa. Um ente em devir, em estágios embrionários iniciais, seria uma pessoa, quando nos tornamos pessoa justamente pelo processo histórico de socialização? Um ente em devir, incapaz de sentir dor, é defendido, mas animais não-humanos, adultos e sencientes, são abatidos em larga escala, sem comoção, em virtude do especismo que hierarquiza o valor das distintas existências?

Ora, o direito à vida não se aplicaria também à mulher (ou pessoa não-binária ou trans com útero) que presencia seu corpo voltar-se implacavelmente contra si e que, com isso, coloca em risco sua integridade física e mental por não haver aparelhamentos públicos de acolhimento e de resolução adequados? A vida prezada é a “por-vir”, não a objetivamente em curso? Pois a vida, como valor abstrato, não basta. Daí a importância de se ater ao fato de que as definições de vida e de pessoa ultrapassam a dimensão biológica e possuem estatutos ontológicos instáveis. São construtos coletivos engendrados na e pela sociedade no desdobrar da história, a partir de correlações de força específicas, que atendem a interesses também específicos. A defesa da descriminalização do aborto, dessa forma, é a defesa, sim, da vida! Da vida dotada de, ao menos parcialmente, autodeterminação. Ecos da máxima: educação para decidir, contraceptivos para não engravidar e aborto legal, gratuito e seguro para não morrer.

O exercício de nossa sexualidade, desde o advento da pílula anticoncepcional na década de 1960, passou pelo que se convencionou denominar, na literatura, de revolução. Dissociar o sexo da procriação e anunciá-lo como veículo de fruição e de prazer, de fato reconfigurou concepções e relações sociais. No entanto, esta é apenas parte da história. Tanto a pílula anticoncepcional, quanto outros métodos contraceptivos, apresentam taxas de eficácia não-totalizantes, com margem para falhas, e o acesso e a adesão a esses métodos variam em função de fatores educacionais, sociodemográficos e econômicos (TRINDADE et. al, 2021), de modo que a liberdade de usufruir da própria sexualidade se desenha de modo parcial e incerto, mesmo com a utilização sistemática de contraceptivos.

Neste ínterim, pode haver casos de gravidez não planejada que passam, no curso existencial, a ser desejadas e, porventura, são levadas a cabo. Casos que contam com algum nível de suporte material e emocional, em que a gravidez passa a compor um novo planejamento de futuro. Mas há também casos de gravidez não desejada que desestabilizam e mortificam, que não encontram vazão possível na realidade presente, seja por motivos de ordem econômica ou psicossocial. O que fazer? Culpamos, condenamos e encarceramos? Fingimos que o índice de abandono paterno não existe e não nos impacta enquanto sociedade? Já se entoa em Negro Drama, “família brasileira, dois contra o mundo”. A “viração” torna-se caminho para sobreviver numa realidade marcada por processos de exploração-opressão tão profundos, com gênero, classe e raça bem definidos. Num mundo de desmonte dos direitos sociais, que renomeia o “corre” de empreendedorismo e as jornadas duplas ou triplas de trabalho, de mulheres exaustas, como heroísmo.

Pensando ainda no que concerne à articulação supracitada entre unidade e diversidade, me proponho aqui a perscrutar a posição, ante ao aborto, das mulheres que vivenciam a prostituição. Isso porque, pela própria natureza do exercício da prostituição, que envolve múltiplos parceiros, as trabalhadoras do sexo são um grupo especialmente vulnerável às infecções sexualmente transmissíveis (CARVALHO, PICCININI, 2008; DAMACENA, SZWARCWALD, JUNIOR, 2011), à gravidez não desejada e à interrupção voluntária da gestação (MADEIRO, RUFINO, 2012; MADEIRO, DINIZ, 2015). Contudo, em virtude do estigma associado às mulheres que atuam no mercado do sexo, e do julgamento moralizante e apriorístico deste ramo, muitas das consequências deletérias destes trabalhos são apresentadas pelo senso comum como merecimento ou como efeito presumível e incontornável: naturalizado, por conseguinte.

Ademais, soma-se aos múltiplos parceiros outros co-fatores que atuam na produção dessa condição de vulnerabilidade: o consumo ou dependência de álcool e outras drogas (OLIVAR, 2008; DAMACENA, SZWARCWALD, JUNIOR, 2011; MADEIRO, RUFINO, 2012; NASCIMENTO, GARCIA, 2015), a negociação do uso de preservativos como forma de separar o mundo do afeto do mundo da prostituição, ou como expressão mesma da permeabilidade desses dois mundos no cotidiano da prostituição (GUIMARÃES, MERCHAN-HAMANN, 2005; PASINI, 2005; FRANÇA, 2014; NASCIMENTO, GARCIA, 2015) e a violência encerrada por clientes que não cumprem com o acordado para o programa, dado o caráter íntimo das transações operadas e as desigualdades de poder em jogo (PELÚCIO, 2005; ESPOSITO, KAHHALE, 2006; BURBULHAN, GUIMARÃES, BRUNS, 2012).

Porém, em função do próprio protagonismo da prevenção às IST/aids nos debates que entrecruzam saúde e prostituição, o tema da gravidez não desejada e do aborto induzido entre mulheres que vivenciam a prostituição tende a ser pouco explorado, não havendo dados sistematizados sobre o aborto inseguro nessa população em âmbito nacional (MADEIRO, DINIZ, 2015).  A fim de compreender essa realidade lacunar, é de suma importância remeter ao status legal do aborto no Brasil, que é condicionado, na atualidade, a três casos específicos: casos de estupro, de gravidez que cause risco de vida à mãe e de fetos anencefálicos. Ao se tratar de uma população posta às historicamente margens e que desestabiliza a mulheridade normativa, a investigação sobre o aborto, que igualmente possui contornos do socialmente repreensível, torna-se tanto desafiador quanto urgente.

Com o abortamento sendo condicionado às três circunstâncias mencionadas, pessoas que demandem a interrupção da gravidez por motivos outros não serão atendidas, vendo-se lançadas à própria sorte. Neste ínterim, cria-se um cenário não de diminuição de abortos, mas de expansão do aborto clandestino e inseguro, bem como de aprofundamento dos processos de estigmatização que penalizam centralmente mulheres negras, pobres e periféricas, como demonstra pesquisa baseada em evidências estatísticas (VIEIRA, SARACENI, 2020). Dito de outra forma: o aborto é uma realidade e como lidamos com ela se revela pouco efetivo, além de degradante subjetiva e materialmente. Ao ente em devir se direciona a compaixão coletivamente disposta, ao ser social, se oferece a farsa meritocrática e os descaminhos do individualismo. Insiste-se no dar à luz, mas pouco se olha com sensibilidade aos percalços da vida sendo vivida em uma sociabilidade cindida e adoecedora.

Levando em conta o levantamento bibliográfico internacional sobre o tema do aborto realizado por mulheres inseridas no contexto de prostituição (MADEIRO, RUFINO, 2012), a situação torna-se especialmente preocupante, pois conclui-se que em contraste com a população em geral, o aborto para as prostitutas se firma como uma experiência reprodutiva regular e usualmente solitária, em que se prevalece a sensação do desamparo, sendo que o medo de serem criminalizadas e aviltadas em contextos institucionais com frequência impede a busca por auxílio hospitalar em casos de complicações durante ou após o procedimento. Como indica a Associação Paulista de Medicina, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que aproximadamente 13% das mortes maternas em todo o mundo advêm de abortos inseguros, equivalente a 47 mil óbitos. No Brasil, por seu turno, o aborto está entre as cinco principais causas de mortalidade materna. Criminalizar é uma saída?

Posto isso, ao levar-se em conta o modo incisivo com que as condições sociais atingem não só a vivência material, mas também a constituição subjetiva dos sujeitos em suas interações com o meio e com os outros, parece incontornável uma politização do campo da saúde, através de uma perspectiva ampliada e interdisciplinar deste. Em outras palavras, pelo fato mesmo de a existência humana ser mediada e não imediata e fechada em si, a compreensão dos processos de saúde, sofrimento e adoecimento precisam abarcar essas mediações. A descriminalização do aborto, enquanto uma frente de luta fronteiriça à saúde pública, reforça esta premissa, indicando para o imperativo de ações coordenadas que visem processos emancipatórios na arena da sexualidade, o que implica “educar-se-nos” em infinitivo, desde um ponto de vista feminista no plural de suas vozes e lugares de enunciação.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURBULHAN, Fernanda; GUIMARAES, Roberto Mendes; BRUNS, Maria Alves de Toledo. Dinheiro, afeto, sexualidade: a relação de prostitutas com seus clientes. Psicol. estud., Maringá, v. 17, n. 4, p. 669-677, dez.  2012.

CARDOSO, Bruno Baptista; VIEIRA, Fernanda Morena dos Santos Barbeiro; SARACENI, Valeria. Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.36, supl. 1, e00188718,  2020.

CARVALHO, Fernanda Torres de; PICCININI, Cesar Augusto. Aspectos históricos do feminino e do maternal e a infecção pelo HIV em mulheres. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 13, n. 6, p. 1889-1898,  Dec. 2008.

COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.

DAMACENA, Giseli Nogueira; SZWARCWALD, Célia Landmann; BARBOSA JUNIOR, Aristides. Implementation of respondent-driven sampling among female sex workers in Brazil, 2009. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro,  v. 27, supl. 1, p. s45-s55, 2011.

ESPOSITO, Ana Paula Gomes; KAHHALE, Edna Maria Peters. Profissionais do sexo: sentidos produzidos no cotidiano de trabalho e aspectos relacionados ao HIV. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre ,  v. 19, n. 2, p. 329-339, 2006 .

MADEIRO, Alberto Pereira; DINIZ, Debora. Induced abortion among Brazilian female sex workers: a qualitative study. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 20, n. 2, p. 587-593,  Feb.  2015 .

MADEIRO, Alberto Pereira; RUFINO, Andréa Cronemberger. Aborto induzido entre prostitutas: um levantamento pela técnica de urna em Teresina – Piauí. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 17, n. 7, p. 1735-1743,  July  2012.

TRINDADE, Raquel Elias da et al. Uso de contracepção e desigualdades do planejamento reprodutivo das mulheres brasileiras. Ciência & Saúde Coletiva [online]. v. 26, suppl. 2, pp. 3493-3504, 2021.


Cínthya Bastos Ferreira é egressa do curso de Ciências Sociais (Licenciatura) da UNIFAL-MG. É graduada também em Psicologia pela PUC-MG, tendo atuado como monitora da disciplina Epistemologia da Psicologia, além de realizar estágios formativos no âmbito da educação e da saúde pública. Na UNIFAL-MG, foi bolsista nos programas de ensino Residência Pedagógica e Pibid; extensionista no projeto Observatório da Democracia, e desenvolveu pesquisas acerca da temática da prostituição e suas interfaces interseccionais, pelo Programa Institucional de Iniciação Científica Voluntária (PIVIC). Atualmente é membra do Grupo de Estudos sobre Trabalho e Tecnologia (GETT) da Instituição. Suas áreas de interesse são: estudos feministas, prostituição, sociologia do trabalho, psicologia social crítica, educação e ensino de sociologia, teoria marxista da dependência.

 

 

(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).

Participe do Jornal UNIFAL-MG!

Você tem uma ideia de pauta ou gostaria de ver uma matéria publicada? Contribua para a construção do nosso jornal enviando sugestões ou pedidos de publicação. Seja você estudante, professor, técnico ou membro da comunidade, sua voz é essencial para ampliarmos o alcance e a diversidade de temas abordados.

LEIA TAMBÉM