Afinal, o que é crime?

Atualizado em 28 de agosto de 2024 às 09:48

Waldir Severiano de Medeiros Júnior¹ 
Rodrigo Murad do Prado²

O que torna uma conduta humana uma conduta, não apenas antiética ou ilegal, mas criminosa? Na determinação da causalidade de um crime, como delimitar a cadeia causal penalmente relevante (por exemplo, no caso do fabricante de armas que vende seus produtos para o comerciante que por sua vez revende uma arma de fogo para outra pessoa que em seguida a utiliza para assassinar um desafeto, aqueles dois, o fabricante e o comerciante, deveriam ser responsabilizados juntamente com a pessoa autora dos disparos)? Para uma pessoa que está a caçar sozinha à noite num lugar deserto e que acaba ferindo de morte outra pessoa por haver tomado os movimentos desta como os de um animal, quais os efeitos crímino-penais dessa sua falsa percepção da realidade? O sujeito que subtrai um pacote de bolacha para ter com que forrar o estômago, deveria ter sua conduta enquadrada como furto?

Para se defender de uma conduta criminosa (e.g. roubo), a vítima pode se valer de uma qualquer conduta também criminalizada (e.g. assassinato)? Na luta desesperada de dois náufragos por um colete salva-vidas, o que conseguiu sobreviver, por haver matado o outro, deveria responder por homicídio? O soldado que mata o inimigo no campo de batalha em tempo de guerra, está totalmente eximido da responsabilidade por homicídio? O lutador de boxe que soca e é socado, tem direito de socar outrem e de permitir que o soquem? O sujeito que causa lesões numa pessoa masoquista a pedido desta, ainda assim incorre em crime?

A pessoa criminalmente imputável, a despeito de todos os condicionamentos naturais e socioambientais, é realmente detentora de liberdade da vontade, como tal senhora de suas escolhas? O turista que alega que desconhecia o caráter delituoso ou ilícito (logo, proibido) de determinada conduta, deveria ter sua culpabilidade afastada? Seria humanamente exigível de um gerente de banco que ele, mesmo sob a mira de um revólver, houvesse agido de um modo outro que não o voltado à colaboração com o assaltante na abertura do cofre?

Ainda, existe algo como justiça penal ou esta mais não seria do que a “justiça” da redução de danos própria às situações, em maior ou menor medida, de “tragédia”? O agente socialmente vulnerável, que termina por se enveredar pela via do crime num contexto de histórica violação socioestatal da prestação minimamente satisfatória dos direitos humanos fundamentais (e.g. alimentação, saúde, moradia, segurança, educação, trabalho, dignidade… oportunidades), é o principal ou quiçá o único responsável por sua “tragédia”? Aliás, existe propriamente um “direito penal” ou, no final das contas, este mais não seria do que uma ideologia escamoteadora do “poder punitivo”?

Ora, a teoria do crime distingue-se da teoria da pena ou teoria da justiça penal, e firmou-se na modernidade, desde o iluminismo, como uma teoria que tem por problema perguntas do jaez das constantes dos três primeiros parágrafos (as constantes do quarto parágrafo normalmente integram a problemática da justiça penal). Sendo mais específico, o fenômeno do crime, em especial para a teoria analítica do crime em sua vertente mais didática e consagrada, qual seja, a teoria analítica tripartite, é o produto da soma destes três fatores: fato típico, antijuridicidade e culpabilidade.

Muito basicamente, na etapa da verificação do fato típico, analisa-se a) se se trata de conduta humana penalmente relevante, isto é, de conduta, comissiva ou omissiva, movida por dolo ou culpa stricto sensu (o que não acontece, por exemplo, nas hipóteses de ato reflexo, sonambulismo ou de conduta “arrastada” por caso fortuito ou força maior); b) se há nexo de causalidade suficiente entre a conduta e o resultado enquanto produção do risco proibido pela norma, mormente em se tratando de crimes materiais (crimes para cuja configuração faz-se imprescindível alguma modificação da realidade); c) se, na hipótese de falsa percepção da realidade, o agente agiu sob ilusão vencível ou invencível; e d) se há tipicidade material, no sentido de constatação da existência de danos reais, expressivos, decorrentes do cometimento da conduta, para além da mera subsunção formal desta a um determinado tipo penal.

Em seguida, na etapa da verificação da antijuridicidade, analisa-se se a ilicitude indiciada no fato típico pode ser tomada como procedente pela ausência de quaisquer das excludentes de ilicitude de praxe, quais sejam, a) legítima defesa, b) estado de necessidade, c) estrito cumprimento de dever legal, d) exercício regular de direito e e) consentimento da vítima. Como se observa, trata-se de uma análise negativa, haja vista que essencialmente voltada à certificação de não ocorrência de nenhuma excludente impossibilitadora da confirmação da ilicitude avançada no fato típico.

Por fim, na etapa de verificação da culpabilidade, são analisados os elementos por que esta se desdobra ou constitui, a saber: a) imputabilidade, comumente definida como a capacidade de, quando da ação ou da omissão, entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, ou, como preferimos, a liberdade relativa da vontade, no sentido de possibilidade de exercício efetivo da deliberação racional de motivos conflitantes, logo, de modificabilidade da conduta; b) potencial consciência da ilicitude, logo, potencial eficácia (contra)motivacional; e c) exigibilidade de conduta diversa, vale dizer, exigibilidade de uma possibilidade de motivação outra que não a conducente à conduta delituosa.

(De modo que só se passa à fase da responsabilização criminal, i.e., da aplicação judicial e execução administrativa da sanção penal, se, e somente se, previamente restar configurada, no âmbito de um devido processo legal sob o signo do contraditório e da ampla defesa, a caracterização tripartite do delito – embora, ressalve-se, a possibilidade de ainda assim se afastar a responsabilização/punição do agente, considerando-se a possibilidade, a depender do caso, de incidência de alguma excludente de punibilidade, como anistia, graça ou indulto, abolitio criminis, decadência, perempção, prescrição, renúncia, perdão do ofendido, perdão judicial, retratação do agente etc.)

Dessarte, conclui-se que, no direito penal moderno, qualquer conduta imputada como delito ou crime, só o será na medida em que preencher os três requisitos da conceituação científica de delito ou crime de há muito encampada, de alguma maneira e segundo graus vários, pelo legislador dos países/Estados ditos modernos, como é o caso do Brasil. Requisitos estes, de resto, remontáveis, direta ou indiretamente, à lógica garantista de fundo do direito penal, segundo a qual, nunca é demais relembrar, a) não há pena sem crime, b) nem crime sem lei, c) nem lei sem necessidade, d) nem necessidade sem ofensa, e) nem ofensa sem conduta, f) nem conduta sem culpa (lato sensu), g) nem culpa (lato sensu) sem processo, h) nem processo sem acusação, i) nem acusação sem provas e j) nem provas sem defesa.

Sim, até mesmo aquelas situações que a sociedade, dir-se-ia que animada por uma espécie de ressentimento, tem prazer em prejulgar, como as concernentes à acusações de crimes contra a administração pública, a exemplo, para não citar senão três casos emblemáticos, do peculato (funcionário público que se apropria de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou que o desvia, em proveito próprio ou alheio), da concussão (funcionário público que exige, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida) e da corrupção passiva (funcionário público que solicita ou recebe vantagem ou promessa de vantagem em troca de algum tipo de favor ou benefício ao particular); mesmo tais casos, dizíamos, para poderem ser técnica e legitimamente reconhecidos como crimes, precisarão ser comprovados em termos de fato típico, antijurídico e culpável, logo, nos termos da conceituação científica tripartite de crime legalmente positivada. O mesmo, na verdade, podendo ser dito de quaisquer crimes – sem prejuízo, por óbvio, das peculiaridades próprias de cada modalidade de delito.

Do que se depreende, portanto, que, juridicamente falando, não é a bíblia, a cartilha do partido, o “clamor social”, o apresentador midiático, o delegado cowboy, o promotor justiceiro, os preceitos desta ou daquela seita ideológica, o doutrinador de renome ou o umbigo do juiz que define o que é crime. Mas sim – e sobretudo nos quadros do Estado Democrático de Direitos e Garantias – a lei nos moldes da estruturação científica tripartite acima delineada.


Referência bibliográfica     

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general. Tomo I. Trad. Diego Manoel Lúzon Pena; Miguel Díaz García Conlledo; e Javier de Vicente Remesal. Madri: Civitas, 1997.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal. Parte general. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1981.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidad por la vulnerabilidade. Lectio Doctoralis, Doutorado Honoris Causa, Universidade de Macerata, 2002.

WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal. Uma introdução à doutrina da ação finalista. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: RT, 2001.


Waldir Severiano                                                                                                                                             

Waldir Severiano de Medeiros Júnior é professor de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG, campus Varginha. Pós-doutorando em Direito e Justiça (UFMG), é mestre e doutor em Direito e Justiça (UFMG), e também consultor Jurídico (OAB-MG 216.370).

Rodrigo Murad do Prado é professor de Direito Penal e Processual Penal em diversas instituições. Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires sob a orientação de Eugenio Raúl Zaffaroni e Matias Bailone. Defensor Público do Estado de Minas Gerais.

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