A maneira como os argentinos se expressam é muito apreciada e, especialmente, o modo como eles elaboram suas narrativas, um misto de realismo e humor, o que garante reflexão e entretenimento.
Em Os Brutos (2019), Matias Segreti, com sua escrita ora Pound, ora Hemingway, nos conduz por labirintos tão nebulosos que nos faz engasgar com a própria saliva.
É que a miséria dói. Contudo, estranhamente, acostuma-se a ela. Ou simplesmente intui-se que é assim que deve ser. Que se deve seguir a vida como se nada tivesse acontecido. Por isso, uma mãe arruma a cama do filho falecido todas as manhãs, enquanto uma outra coloca o bule no fogo após ter assistido pela televisão seu filho assassinando alguém. Triste realidade. No entanto, como os brutos entoam, tristeza é igual vontade: dá e passa. E é assim que deve ser, pois tristeza não enche barriga e nem compra sutiã para a filha mais velha.
Por meio do arquétipo literário do bruto, Segreti nos apresenta personagens que empurram a Pedra de Sísifo. Dia após dia. E como pesa! Mas e o topo da montanha? Talvez nem exista…. Ou não seja para eles – eles que movem o mundo com sua luta – assim dizem: Vamos à luta. Se Deus quiser. E o Gauchito Gil que nos acuda! Amém.
Aqui estou, enfrentando tudo, enfrentando o que posso entender e, ainda mais, enfrentando o que não posso, porque aguento firme, pelos meus filhos, por Deus, Jesus Cristo e a Virgenzinha.
Os doze trabalhos de Hércules diariamente. Hércules, aquele bruto, pobre-mortal-herói que, depois de tanto trabalhar, foi levado pela morte para o Olimpo, onde se tornou tão imortal quanto os espíritos da casa de Dora.
Me conta que trabalha quase dez horas todos os dias, exceto nas manhãs de domingo, quando faz um pequeno trabalho de encanamento.
Assombração. Pessoas trabalhando como mulas e ainda assim, postas à margem e convencidas de que são inferiores e de que, quiçá, nem sejam humanas. Pessoas que não têm direito a muita coisa e, quando creem que poderiam ter, surge alguém que muda o discurso. Valei-me, Virgenzinha!
Sou corajosa!
Coragem e mais: o coração bruto é o lar da generosidade e da sensibilidade – pasmem. É que há um aspecto fractal, como se o coração de um fosse o de todos – como o da vizinha que conta histórias, do vendedor ambulante que oferece bala, da idosa que pega uma mochila que caiu, dos amigos com alta habilidade de improvisação, da criança mais inteligente da escola e do rapaz que caminha apreciando a vida.
Minha matéria é o ar e todos os seres que vivem nele e morrem com ele. São os pássaros que se escondem quando chega a tarde, são as aves que reviram sacolas, são os insetos que infelizmente picam, pululam, voam erráticos. Minha matéria é a multidão e a solidão, as árvores robustas e os galhos que causam pena, sua cor opaca, suas folhas mortas, seu ocaso. Quando caminho, minha lupa busca as fragrâncias das casas, as compara, as descarta, as esquece e volta a compará-las. Quando caminho, procuro o cheiro da infância e o broto de um loureiro ou de um jasmim.
Decerto, há muita dor em ser bruto, mas há também o desejo profundo de amar, como nas canções de Fito Páez, aquele sonho de encontrar um amor puro e sincero – “o amor que ilumina a existência”.
Aceitar a ideia do amor não convencional, o irrepetível, a paixão do acontecimento, a possibilidade de um futuro que encontre todos aqueles que convivem com a promessa do amor que ilumina a existência.
A propósito, não parece haver melhor tradução para a crônica de Rubem Alves “Ostra feliz não faz pérola” (2008) do que Os Brutos. A felicidade está nas pequenas coisas da vida, e disso, os brutos sabem. A dor é lancinante. Nenhum Panem et circenses é capaz de extirpá-la. Porém, é justamente essa dor que engendra a pérola.
Os corações nublados podem sentir carinho, ternura, até mesmo desejo e paixão.
Dói ser pobre. Mas resigna-se. Ou conforma-se. Ou deduz-se que se deve prosseguir apesar de tudo – resiliência está na moda. Por outro lado, Deus quis assim. E Deus sabe de todas as coisas. Ou uma certa escritora: a “Escritora de Destinos”, uma espécie de norna ou parca ou moira; enfim, uma mulher que escreveu um livro onde confessa que foi ela que criou tudo, inclusive as pessoas. A ideia de haver um destino é bastante familiar a todos nós. E se há alguém a quem culpar, pela boa sorte ou pelo azar, é essa pessoa que resolveu nos colocar dentro da sua história.
Nem eu nem eles éramos os protagonistas da história, éramos a invenção dessa mulher que havia escrito tudo.
Eis uma dedução que nos remete à passagem contida no livro “Respiração Artificial” (1980) de Ricardo Piglia:
Não adianta nada pensar na casualidade, sobretudo se o que pensa é alguém como eu… convencido de que tudo está determinado.

É. Não se pode fazer nada. Tudo já está determinado – pela escrevedora, pelo sistema, pelo governo, pela sociedade – esses entes que não têm nomes próprios, ou nós que não os sabemos. É que não dá tempo de pensar nisso, “os corre” dessa vida não permitem nem sequer lembrar do dia do nosso aniversário, quem dirá de cogitar teorias mirabolantes. Deixa pra lá. No mais, “a paciência é uma virtude”. Quem sabe um dia tudo muda. Ou não. Quem sabe?
O genial Matías Segreti é professor e também autor de El silencio es otra muerte (2024), Gauchito (2021), El día que conseguí trabajo (2020) e Aunque a nadie ya le importe (2018).

Título: Os Brutos
Autor: Matías Segreti
Gênero: Conto
Selo: Editora Peabiru
Ano da edição: 2023
Páginas: 100

Clarissa Xavier Machado é professora graduada em Letras e Direito, pós-graduada em Tradução e Literaturas Brasileira e Inglesa, e pós-graduanda em Neurociências da Educação. É Mediadora de Leitura e autora dos livros “Pelas Águas de São Lourenço” e “Buen(os) Aire(s)”. Acadêmica Correspondente da Academia Feminina Sul-Mineira de Letras e membro do Grupo Literário Fonte das Letras. Natural do Rio de Janeiro, vive desde 2017 no Sul de Minas, onde atua na educação básica lecionando inglês.