Como as democracias sobrevivem

(Foto: Reprodução/Internet)

No best-seller “Como as Democracias Morrem”, os professores de Ciência Política da Universidade de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt apontam que, no século XXI, as democracias ao redor do mundo raramente morrem por rupturas violentas, mas por um declínio gradual e legalista. Antigamente, tais regimes declinavam por golpes militares, com tanques nas ruas, bombas, disparos e militares armados, como se observou na Europa dos anos 1930 e na América Latina dos anos 1960 e 1970. Porém, foi-se este tempo dos palácios em chamas, dos presidentes mortos, presos ou exilados e da instalação forçada de um regime autoritário. Atualmente, as democracias não perecem necessariamente por meio de sublevações, motins, tomadas de assalto ou ataques externos; elas são implodidas, corroídas desde dentro, lentamente, como cupins destruindo a madeira.

Segundo os autores, tal erosão se dá pelo desgaste gradual das instituições e normas políticas, escritas ou não: brechas na lei, polarizações extremas, deslegitimação ou mesmo desumanização de adversários, rejeição das regras do jogo, tolerância ou incentivo à violência política, restrições às liberdades civis e à imprensa livre, desinformação em massa, investidas contra outros poderes, etc. A constituição não é queimada em praça pública; é como se ela fosse rasgada vagarosamente, uma página por dia. Ainda ocorrem eleições, desrespeitadas ou sabotadas, para dar um verniz de legalidade ao processo. Ou seja: autocratas, democraticamente eleitos, empregam estratégias para subverter as instituições por meio das quais foram legalmente eleitos. Desmantelam regras e costumes democráticos internamente, em vez de derrubá-los de uma só vez. Um processo quase invisível de declínio; sutil e perfeitamente legal.

Veja-se o caso brasileiro: a invasão das sedes dos Poderes da República em 08/01/2023 foi só a consumação de um longo processo. Nos últimos anos, assistiu-se a conspirações, urdiduras, cooptação de Forças Armadas, ataques reiterados às instituições, obstrução de votos no Nordeste, ataques, vandalismo e queima de automóveis em Brasília no dia da diplomação do novo presidente eleito, tentativa de explosão no aeroporto da capital do Brasil, lives de desinformação, ilações sobre fraude eleitoral e monitoramento ilegal de pessoas “incômodas”. Isso sem contar os acampamentos em portas de quartéis, a difusão online do ódio contra autoridades judiciais e o planejamento do assassinato do presidente eleito, de seu vice e de um juiz da Suprema Corte. Ou seja: um caso típico de recessão democrática contemporânea, com direito a rivais tratados como inimigos, tribunais desafiados, imprensa livre intimidada, ameaça de rejeição de resultados eleitorais, mentiras sobre urnas fraudadas, tumulto da votação, forças de segurança e órgãos de inteligência instrumentalizados, direitos constitucionais violados, etc.

Contudo, Levitsky e Ziblatt pontuam que a história não ensina apenas como as democracias são enfraquecidas, mas também como se fortalecem. Cidadãos, partidos, imprensa e instituições devem agir juntos para proteger as regras do jogo. Coalizões amplas para se isolar extremistas, tribunais independentes, imprensa livre e partidos políticos fortes são barreiras contra o autoritarismo, pois filtram e contêm figuras antidemocráticas, ao invés de promovê-las.

A democracia, portanto, dizem os autores, depende não só de leis, mas também de normas não escritas, como tolerância e autocontenção. Os agentes políticos devem buscar o fair play necessário à estabilidade do regime. Isso significa aceitar a legitimidade do adversário e não usar todo o poder disponível para esmagar o opositor. Evitar o “jogo duro” institucional que, mesmo legal, é destrutivo.

Há quase 90 anos, Sérgio Buarque de Holanda diagnosticou a fraqueza das instituições democráticas brasileiras ante o autoritarismo de nossas elites políticas personalistas e patriarcais:

“A democracia entre nós foi sempre, até hoje, um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios de classe. Tomada ao pé da letra, representava para essa aristocracia a sua própria negação.”

Contudo, em 11/09/2025, pela primeira vez em nossa história, golpistas foram condenados por organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, com considerável prejuízo para a vítima, e deterioração do patrimônio tombado. Militares, historicamente envolvidos em conspirações contra a normalidade constitucional, enviados para a cadeia. Artigo do Washington Post de 18/08/2025 já retratava a atuação firme do Supremo Tribunal Federal pela preservação das instituições brasileiras, apesar das tensões com os EUA e de acusações infundadas de perseguição política.

Esta é uma inflexão histórica. A democracia brasileira começa a deixar de ser um “lamentável mal-entendido” para se firmar como um farol para suas contrapartes mundo afora. O Brasil cresce como referência de como as democracias sobrevivem.

Para saber mais:

DIAMOND, Larry. Facing up to the democratic recession. Journal of Democracy, Baltimore, v. 26, n. 1, p. 141-155, jan. 2015.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. SP: Companhia das Letras, 1995.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. RJ: Zahar, 2018. 

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como salvar a democracia. RJ: Zahar, 2023.

MCCOY, Terrence. Brazilian judge Alexandre de Moraes refuses to bend to Trump’s will. The Washington Post, Washington, D.C., 18 ago. 2025. Disponível em: https://archive.ph/4o2yP. Acesso em: 11 set. 2025.

SÁ, Thiago Antônio de Oliveira (org.). Extremo – O Mandato Bolsonaro. São Paulo: Kotter Editorial, 2022.

Thiago Antônio de Oliveira Sá é professor do curso de Ciências Sociais do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) da UNIFAL-MG. Dedica-se às áreas de Teoria Sociológica, Sociologia da
Educação e Pensamento Social Brasileiro.

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