O tema do racismo é tratado expressamente pela Constituição Federal de 1988 em pelo menos dois pontos, a saber: no inc. VIII do art. 4º, em que se verifica o repúdio do racismo como um dos princípios que devem reger as relações internacionais do Estado brasileiro; e no bojo do art. 5º, mais especificamente na altura do inc. XLII, onde se encontra a previsão de que “[…] a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
Conforme se depreende de uma interpretação sistemática da Constituição, a dignidade constitucional do tema do racismo decorre do fato dele ser encarado como integrando a categoria dos crimes contra a humanidade, cuja reprovação, por atentarem contra a condição humana, é maior que a reprovação criminal ordinária.
Falando de forma mais técnica, a vedação do racismo deita raízes na garantia da vida digna. É em defesa desta que se reprova tão veementemente o racismo, de modo que defender a pessoa contra o racismo é, em última instância, defendê-la contra uma das formas mais abjetas de violação da dignidade humana.
Portanto, a garantia fundamental contra o racismo é senão mais uma das várias decorrências ou sérias implicações da garantia fundamental do direito à vida digna.
Mas, para efeitos jurídicos, o que, exatamente, é racismo?
Segundo a Lei do Racismo, Lei 7.716 de 1989 (que sofreu algumas alterações desde sua edição), a conduta racista tem que ver com discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, embora – e aqui vai uma ressalva importante – o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal, firmado inicialmente no contexto de um habeas corpus (HC 82.424/RS), seja no sentido de que não existe mais de uma raça, mas unicamente a raça humana.
Devendo-se, por conseguinte, o crime de racismo ser compreendido de forma mais ampla, abrangendo todo e qualquer tratamento preconceituoso ou discriminatório que restrinja ou possa restringir os direitos da pessoa com base pura e simplesmente na sua condição humana. Donde, por exemplo, xenofobia, ateísmofobia, homofobia e transfobia, malgrado não previstas claramente como hipóteses de racismo pela lei supra, poderem ser configuradas, por esse entendimento do STF, como modalidades de racismo.
Quanto às especificações de sua reprovabilidade constitucional (art. 5º, inc. XLII da CF/88), o crime de racismo, como visto, além de estar necessariamente sujeito à pena de reclusão (o acréscimo da pena de multa foi introduzido pela legislação infraconstitucional da matéria), é inafiançável e imprescritível, estas duas características consistindo nas principais consequências práticas de sua reprovação diferenciada.
De fato, dizer que o crime de racismo é inafiançável significa dizer que não há a possibilidade de o agente responder o processo em liberdade através do pagamento de fiança – conquanto, atente-se, a possibilidade de o acusado, por razões outras que não o pagamento de fiança, responder o processo por crime de racismo em liberdade.
(Conforme previsão constitucional, há outros crimes inafiançáveis além do racismo, a saber, a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, os crimes hediondos, a tortura, o terrorismo e o tráfico ilícito de substância entorpecente e drogas afins, mas, no presente texto, à força de recorte, foquemos no racismo.)
Por sua vez, dizer que o crime de racismo é imprescritível equivale a dizer que, com relação a ele, o Estado não perde o seu poder-dever punitivo. Mesmo após o transcurso de um longo período da prática do delito de racismo, o Estado, se ainda não o fez, poderá investigar, processar, julgar, condenar ou aplicar a pena ao agente.
Em outras palavras, o correr dos anos, com relação ao crime de racismo, não tem por efeito extinguir o poder-dever punitivo do Estado num dado momento, este subsistindo praticamente pelo tempo em que o agente existir.
Valendo lembrar, todavia, que, a regra, até por força da dignidade da pessoa humana, é a de que os crimes prescrevem, a imprescritibilidade sendo a exceção, justificável apenas com relação a crimes especialmente reprováveis previstos taxativamente como imprescritíveis pela CF/88, como é o caso do crime de racismo. Com efeito, somente com a alteração do texto constitucional, via Emenda, é que se poderia mudar o rol dos crimes imprescritíveis, incluindo, por exemplo – como se tem pretendido – o crime de estupro.
(O outro delito previsto como imprescritível no texto da CF/88 é o concernente à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.)
Por fim, vale ressaltar que tanto o STF em sede de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida (RE 983.531) quanto a Lei 14.532 de 2023 (que, dentre outras alterações, inseriu novidades nos arts. 2º-A da Lei do Racismo e 140 do Código Penal) terminaram por equiparar a injúria racial (leia-se: direcionamento de palavras raivosas, humilhantes e ofensivas, contra esta ou aquela pessoa, motivadas por sua condição humana) ao racismo, transformando-a, por via de consequência, em crime também inafiançável, imprescritível e punível nos moldes da sanção prevista para o racismo (dois a cinco anos de reclusão e multa), sob pena de se proteger a condição de ser humano, a vida digna, apenas parcialmente, i.e., de modo insuficiente ou deficitário.
Referência
BRANDÃO, Adelino. Direito racial brasileiro: Teoria e prática. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm
BRASIL. Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14532.htm
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424/RS. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur96610/false
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 983.531. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13501521
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra/Portugal: Edições Almedina, 2003.
SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. Direitos humanos e as práticas de racismo. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2013.
Waldir Severiano de Medeiros Júnior é pós-doutorando em Direito e Justiça (FDUFMG). Mestre e Doutor em Direito e Justiça (FDUFMG). Professor colaborador de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG. Consultor Jurídico (OAB-MG 216.370). Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política e Administração Pública.
Núbio Mendes Parreiras é mestre em Direito Penal pela PUC Minas. Especialista em Ciências Penais pelo IEC-PUC Minas. Professor dos Cursos de Pós-Graduações (Especialização) em Ciências Penais do IEC-PUC Minas e em Advocacia Criminal da ESA da OAB/MG. Advogado criminalista. Temas de interesse: Direito Penal, Política e Administração Pública.
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