Escritor no hospício

Afonso Henriques de Lima Barreto foi, em certo sentido, o anti-Machado de Assis; o exercício da literatura jamais lhe trouxe qualquer proveito como meio de ascensão social. Machado obteve uma posição confortável, a partir dos trinta e poucos anos, na sociedade do Rio de Janeiro, capital do Império; chegou a firmar com sua editora contratos singularmente vantajosos, recebendo adiantamentos por livros ainda não escritos, coisa que até hoje poucos autores brasileiros conseguem.

Lima Barreto esteve sempre à margem, na literatura e na vida social. E, não sendo a condição de mestiço de origem pobre – que, em tese, igualaria os dois escritores – bastante para explicar a diferença, certamente a discrepância dos temperamentos o faz em boa parte: Lima não tinha nenhum talento para adaptar-se a convenções, muito diferentemente do morigerado Machado, cuja vida pública em nada deixou transparecer a turbulência secreta de seu gênio, com certeza afetada em alguma medida (posto que, talvez, positivamente) pela constituição mórbida que Peregrino Júnior e outros analisaram em alguns dos primeiros estudos sobre o Bruxo do Cosme Velho. Veja-se, a propósito, Doença e constituição de Machado de Assis (1938).

Num campo comum entre as duas obras, a diferença se faz especialmente notável: a tematização da loucura. Os enredos em que os protagonistas são internados em hospícios a evidenciam: se em O alienista (1882) uma única cena se passa no interior da Casa Verde, o temível espaço onde o médico Simão Bacamarte exerce seus poderes totalitários sobre a vila de Itaguaí, o romance inacabado Cemitério dos vivos (1920) esboça uma análise em detalhes da instituição manicomial. Ao passo que o hospício de Machado prefigura o castelo do romance kafkiano, paisagem ausente da narrativa a não ser pelas menções que se lhe fazem, o protagonista da narrativa de Lima Barreto, Vicente Mascarenhas, percorre longamente a “geena social”, que é a ala dos indigentes do manicômio, descrevendo a variada fauna composta pelos internos e refletindo sobre os mecanismos do poder psiquiátrico, além de analisar a vertiginosa transformação que se operara na vida do interno nas 24 horas passadas desde sua queda de funcionário público a mendigo. Tudo perfeitamente autobiográfico.

Machado de Assis nunca deve ter passado nem pela porta do hospício, até porque sua origem étnica e seu quadro de saúde – com destaque para a epilepsia do lobo temporal, de que sofreu alguns ataques em público – o tornavam, à luz das preconceituosas e equivocadas doutrinas médicas em voga na época, triplamente suspeito de loucura. Devido a seu prestígio como escritor e funcionário público graduado, dificilmente alguém terá pensado em interná-lo no casarão da Praia Vermelha, onde funcionou a primeira instituição psiquiátrica brasileira, o Hospício de Pedro II, depois chamado Hospício Nacional de Alienados. Lima Barreto também foi funcionário, mas modesto amanuense do Arsenal de Guerra, e seu alcoolismo fez dele um hóspede mais ou menos habitual da ala reservada aos que, não sendo criminosos nem vadios, incomodavam o público pelas inconveniências típicas da dipsomania. Ele era um pouco o que hoje chamam “sincerão”, e o abuso da cachaça de Paraty graduava sua sinceridade a ponto de fazê-la extravasar para o delírio.

Cemitério dos vivos teria sido, na opinião do crítico literário Eugênio Gomes, a obra-prima do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma. Juízo um pouco exagerado, a julgar pelos seis capítulos que Lima conseguiu escrever, já nas vésperas da morte. A matéria-prima do romance é o diário que ele manteve por ocasião de sua segunda internação, arranjada pelo seu irmão Carlindo, pessoa que, nas palavras do escritor, “tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do hospício”. O motivo do recolhimento foi o alcoolismo, que já havia posto Lima às voltas com a polícia algumas vezes.

As edições do livro fazem preceder os referidos capítulos do “Diário do Hospício” à parte propriamente (e escassamente) ficcional. Do cotejo entre os dois segmentos, fica evidente que pouca coisa mudou na reescrita do diário. Além do esboço de sociologia da instituição, depois replicado por outros escritores que frequentaram manicômios (casos especiais: Maura Lopes Cançado, Renato Pompeu e Carlos Sussekind), o mais interessante nesse volume é a crítica à psiquiatria. Quem conhece a História da loucura na idade clássica (1963), de Michel Foucault, ao ler Cemitério dos vivos se surpreende com as antecipações de Lima Barreto à análise da psiquiatria feita pelo filósofo francês. E Foucault certamente não leu o romance.

Também para Lima Barreto, o encarceramento no manicômio resultava das limitações do conhecimento da medicina a respeito da loucura. O escritor filiava essas limitações a um objeto constante de sua crítica às elites brasileiras – o fascínio colonizado pelas teorias europeias, que fica claro nesta referência a Henrique Roxo, um dos pioneiros da psiquiatria nacional: “um desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte (…) muito livresco e pouco interessado em levantar um pouco o véu do mistério – e que mistério – que há na especialidade que professa” (trecho do Diário do Hospício).

Machado de Assis fez uma crítica muito semelhante às pretensões do cientificismo que, vitorioso com a proclamação da República, tornou-se a ideologia oficial do militarismo a governar o país no início do século XX. Vinculados a uma tradição que remonta à tragédia grega, passando por obras como as de Shakespeare e Cervantes, os dois ficcionistas viam a loucura envolvida por aspectos racionalmente imponderáveis. O “véu de mistério” mencionado por Lima Barreto corresponde ao que Barretto Filho, num estudo importante sobre a obra machadiana, chamou “espírito trágico”. Esse espírito colocava, para ambos os ficcionistas e para toda a tradição aludida, sérios limites à lógica da ciência quando o que estava em análise era o desvario.

A diferença mais marcante entre Cemitério dos vivos e O alienista está no foco narrativo. Em cada um dos casos, a posição do narrador refrata a posição do autor em relação à vida no hospício como experiência; e são visões não apenas divergentes, como opostas. Machado também seria suspeito de “degeneração” genética, de acordo com as teorias prestigiadas na época, e por isso sempre passou longe daquele casarão com janelas gradeadas dando para uma praia. Lima, desprotegido em sua condição de marginal, foi obrigado a conhecer em detalhes um espaço de que o outro apenas terá ouvido falar. Em resumo, certamente Machado de Assis entendeu muito mais a respeito da loucura, inclusive por não a ter sofrido senão nas proporções em que boa parte das pessoas a experimenta; Lima Barreto, porém, tem muito mais a dizer sobre o que é um hospício. A Casa Verde é uma abstração, por mais brilhante que seja O alienista.

 


Título: Cemitério dos Vivos
Autor: Lima Barreto
Gênero: Romance | Ficção
Ano da edição: 2018
Formato: E-book
Selo: Obliq


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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