“El derecho de viver em paz”! Meu primeiro contato com Víctor Jara foi por meio de um professor boliviano na época da faculdade de Jornalismo. Porém, esse contato não se deu como uma simples dica cultural, tipo “olha que compositor bacana?”. Víctor Jara era a trilha sonora de viagens pelas roças do Sul de Minas Gerais para visitação de assentamentos e acampamentos dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, nos municípios de Campo do Meio e de Guapé.
E, as melodias reflexivas e as letras engajadas desse mestre da música campesina sulamericana harmonizaram com o objetivo das viagens de registrar, para um trabalho acadêmico, a luta de trabalhadores e trabalhadoras para obterem sua emancipação e o próprio sustento. O documentário “Do outro lado da porteira” foi o resultado dessas viagens e, Víctor Jara também foi a principal trilha sonora, especificamente, os arpejos da guitarra acústica de “Plegaria a um labrador”.
Essa foi uma breve passagem da vida universitária, porém, muito expressiva e impactante. Conversar e conviver com pessoas tão nobres e tão lutadoras, participar da Mística, comer a comida plantada, colhida e preparada por mãos que, ao mesmo tempo, empunham as enxadas e, fechadas e erguidas, enviam um recado ao mundo. E foi nesse contexto, a minha feliz descoberta do compositor chileno, assassinado pela ditadura de Pinochet, em 1973.
E foi com essa carga sentimental que assisti ao documentário “Massacre no Estádio”, em janeiro de 2019, durante uma viagem a Santiago. O filme havia sido lançado há poucos dias na Netflix chilena e reservei pouco mais de uma hora de uma viagem de férias, em uma cidade que fervilha cultura, para ver e ouvir a triste história de um assassinato, até hoje impune. E essa história, possui algumas versões: em uma delas, que ouvi ainda em tempos de faculdade, Víctor tem seus dedos cortados e é obrigado a cantar uma de suas canções. No entanto, essa versão é refutada pela própria esposa do cantor, pois ela fez o reconhecimento do corpo.
O fato é que Víctor, assim como outras pessoas presas no Estádio do Chile, hoje Estádio Víctor Jara, foi torturado e morto covardemente por ser considerado ameaça ao projeto ditatorial que dominou o Chile de 1973 até 1990. A produção, assinada por Bent-Jorgen Perlmutt, conta a história do cantor, de sua prisão na Universidade de Santiago, onde trabalhava no departamento de comunicação e extensão, e as implicações na busca por justiça, em imagens e depoimentos de companheiros, sobreviventes, artistas e outras testemunhas.
O filme contrapõe versões e apresenta o possível executor de Víctor Jara: o ex-oficial do exército Pedro Barrientos, apontado como assassino por ex-companheiro de farda presente no massacre. Barrientos, com o fim da ditatura chilena, mudou-se para os Estados Unidos e obteve nacionalidade norte-americana. Foi julgado como culpado, porém nunca foi preso e, de acordo com o documentário, vive no estado da Flórida. A produção também expõe o envolvimento dos EUA no golpe militar chileno para derrubada de Salvador Allende, considerado o primeiro presidente socialista eleito democraticamente no mundo. Afinal, “não queriam uma nova Cuba na América do Sul”.
Sim, o filme emociona! Mostra o poder da música de Víctor e a mobilização da classe artística em torno da luta, pois na música “Manifiesto”, ele já havia cantando “Yo no canto por cantar, ni por tener buena voz. Canto porque la guitarra tiene sentido y razón”. E as canções de Víctor Jara dessa época tinham sentido e razão por expressar a vontade de um povo, além de terem sido trilhas sonoras para a luta do povo chileno durante manifestos e manifestações na campanha à presidência. “No hai revolución sin canciones. Cantamos a la mujer al obrero al campesino y al estudiente”, destacava uma das propagandas de Allende.
“Não foi a minha tragédia, foi uma tragédia coletiva. Eu sou uma das que tiveram sorte de ver o marido morto”, disse Joan Jara, esposa de Víctor. De fato, pelos mais de 3.200 mortos e desaparecidos, e milhares de violações de direitos humanos, o golpe militar chileno, de 11 de setembro de 1973, foi uma tragédia que destruiu a vida de homens e mulheres. O “Massacre no Estádio” é uma mostra disso. E, apenas três dias após assistir ao documentário, em visita ao Museo de La Memoria y Los Derechos Humanos, em Santiago, de longe, no imenso painel de vítimas da ditadura, visualizei a foto de Víctor Jara, um símbolo de arte e de luta.
Em uma época que o palco é apenas local de entretenimento ou apreciação, artistas do povo, como Víctor Jara, são cada vez mais raros e imprescindíveis, pois a “sua música é mais perigosa que 100 metralhadoras!”
Sabia mais sobre Víctor Jara em: Fundação Víctor Jara
Para assistir e ouvir: