
O cinema brasileiro vive hoje um esplêndido momento de reconhecimento mundial, consagrado pelo filme “Ainda Estou Aqui” (2024), vencedor do Oscar na categoria de Melhor Filme Internacional em 2025, dirigido pelo diretor e produtor Walter Salles, cuja adaptação cinematográfica foi realizada a partir do livro homônimo (2015) do escritor Marcelo Rubens Paiva, um dos cinco filhos da advogada e ativista Eunice Paiva, mãe do autor, cujo marido, o ex-deputado Rubens Paiva, teve o seu mandato cassado e depois foi perseguido, raptado, torturado e desaparecido durante a ditadura militar. Em linhas gerais, pode-se dizer que o livro presta uma espécie de tributo a Eunice Paiva, por meio de uma narrativa que mistura memórias familiares afetivas e história política, sob uma excelente atuação na tela de cinema das destacadas figuras e atrizes Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, mãe e filha, que interpretaram Eunice Paiva, em diferentes idades, e Selton Mello no papel de Rubens Paiva.
No entanto, na atualidade, o cinema brasileiro se consolida sendo já mais que centenário em contexto nacional, cuja história nasceu, segundo a Agência Nacional de Cinema (ANCINE), com as primeiras imagens cinematográficas que foram registradas na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1898, atribuídas aos irmãos italianos Paschoal Affonso e Segreto ao retornarem da Europa. Assim, a data mencionada passou a ser considerada como a primeira filmagem realizada no Brasil, o que originou o Dia Nacional do Cinema Brasileiro e uma boa oportunidade para celebrar a produção cinematográfica nacional e a valorização da cultura brasileira por meio do cinema. Porém, ao pensar nesta celebração, qual filme escolher ou selecionar para comemorar o Dia Nacional do Cinema Brasileiro entre as inúmeras produções e gêneros cinematográficos que marcaram a trajetória da cinematografia brasileira dos últimos tempos, incluindo as recentes e ainda abrangendo suas exitosas conquistas ao longo de sua história?
Eis que surge aqui, entre tantas possibilidades de bons filmes brasileiros, um excelente longa-metragem, único e instigante, que oferece ótimas condições de leitura e interpretação no âmbito da cultura, mas, também, por propiciar discussões significativas pela abordagem do seu conteúdo, principalmente no que diz respeito à relação com a história, a oralidade, a escrita e a documentação: nos referimos ao filme brasileiro “Narradores de Javé” (2003), dirigido pela cineasta paulista Eliane Caffé, que foi protagonizado com um elenco de ótimos atores, entre eles: José Dumont, Nelson Xavier, Rui Resende, Gero Camilo, Nelson Dantas, Alessandro Azevedo, Maurício Tizumba, Benê Silva, Matheus Nachtergaele, Altair Lima e Luci Pereira. O filme tornou-se uma produção galardoada, com destaque para os seguintes prêmios, menções honrosas e participações em festivais: Prêmio da Crítica no Festival Internacional de Friburgo, Suíça (2003); Prêmio Gilberto Freyre no Cine PE – Festival do Audiovisual, antigo Festival de Recife (2003); Prêmios de Melhor Filme do Júri Oficial e do Júri Popular e Prêmio de Melhor Ator para José Dumont no Festival do Rio (2003); Prêmios de melhor filme independente e melhor roteiro no 30º Festival Internacional do Filme Independente de Bruxelas, Bélgica (2003); Prêmio de Melhor Filme no VII Festival Internacional de Cinema de Punta del Este (2004) e Melhor Filme de Ficção no 5º Festival de Cinema des 3Ameriques, realizado em Quebec, Canadá (2004); Prêmio da Crítica – CINESESC (2005); Prêmio APCA (2005) e Prêmio TAM do Cinema Brasileiro (2005).
A trama central do filme “Narradores de Javé” conta a história de um vilarejo distante no Vale de Javé, o qual estava prestes a ser destruído por causa da iniciativa de um grupo de empresários e políticos que querem fazer do pequeno município uma grande represa ou barragem, e a população, naturalmente, se revolta. Seus habitantes, a maioria analfabeta, ao saberem da notícia, logo procuram uma alternativa para que o povoado da pequena vila não fosse destruído e pudesse desaparecer encoberto pelas águas. Assim, ocorre uma tumultuada assembleia na igreja local e um dos seus integrantes acaba assumindo o papel de líder (Nelson Xavier), tendo uma brilhante e salvadora ideia: ele sugere que se escreva um livro contando as origens de Javé para que a cidade seja considerada um patrimônio da humanidade pelos órgãos competentes; assim, o povoado poderia ser tombado pelo governo e considerado um patrimônio histórico.
No entanto, sem documentos que possam contar o importante passado do lugarejo, os habitantes resolvem escrever a epopeia de Javé com base nos fatos e depoimentos dos nativos — conforme suas próprias lembranças ou histórias ouvidas — função que é incumbida ao singular Antônio Biá (José Dumont) que, por ser um dos poucos que sabiam ler e considerado um “intelectuário” do povoado, sai de casa com a missão de coletar informações dos habitantes mais antigos e escrever o “livro Javérico”, que tem como finalidade contar toda a história do vilarejo baiano para que a região fosse considerada patrimônio histórico e cultural do país, impedindo o seu desaparecimento.
O curioso é que Antônio Biá, tinha sido um carteiro que, para não perder seu emprego, começou a escrever cartas difamando as pessoas do Vale e enviando-as para os habitantes da região. Quando a população descobriu, o expulsou da cidade, porém agora ele representava a única salvação, considerando que os depoimentos a serem colhidos por ele, também deveriam passar pelo seu aval, o que o torna, curiosamente, em uma espécie de “historiador-cientista” por saber ler e escrever; portanto, uma figura importante que supostamente pode transformar a história oral em “verdades” da história oficial, levando em consideração que a história e existência do povoado não tinham ainda sido registradas formalmente, ou seja, não possuíam uma “cidadania” reconhecida, o que significava que seus moradores não poderiam ser reconhecidos como cidadãos por não fazer parte de nenhuma estatística conhecida ou levantada.
Deste modo, o povo de Javé (em hebraico “YHWH”, o nome de Deus, comumente pronunciado como “Yahweh” ou “Jeová”), passa, então, a registrar a sua identidade histórica e cultural, ao relatar ao carteiro da região aquilo que lhes havia sido passado de geração em geração: a saga de seu fundador, Indalécio, no desbravamento do sertão baiano, a fim de fundar um povoado para os seus seguidores. Contudo, subjacente ao discurso oficial, o que se pode perceber em “Narradores de Javé” é uma visão de uma identidade brasileira que está fragmentada em pares opositivos: civilização x barbárie, tradição oral x tradição escrita, onde é possível observar que até os próprios moradores se tornam historiadores e os depoimentos cedidos estão permeados de parcialidade e louvor a este ou aquele herói fundador, conforme parentesco ou mesmo devaneios de quem conta.
Quem assiste ao filme, com certeza terá a sensação que as palavras e a verdade da ficção cinematográfica ficam misturadas, sendo quase impossível escolher apenas um determinado lado. O filme “Narradores de Javé” representa um exemplo da não existência da verdade absoluta e do caráter caótico até da construção da vida, do cotidiano e daquilo que será lembrando pelos nossos descendentes e até pelas futuras gerações. Eliane Caffé consegue fazer do seu enredo uma história/comédia de excelente e instigante nível e leitura cinematográfica e intelectual, originada pela junção dos elementos criativos e técnicos que foram bem executados, desde o seu roteiro, passando pela fotografia, jogo de câmera e, sobretudo, pela ótima configuração do corpo estético da obra. No filme, Eliane Caffé confronta o seu público com uma realidade, diante da qual este não tem como ficar passivo, sendo levado a posicionar-se frente à situação retratada. Ao desenhar na tela uma realidade brasileira que mostra as diversas faces formadoras da sociedade, dando voz às etnias, religiões e classes excluídas, a diretora retoma o posicionamento crítico-reflexivo colocado em marcha pelos adeptos do Cinema Novo.

Título: Narradores de Javé (Brasil, 2003)
Direção: Eliane Caffé
Roteiro: Luís Alberto de Abreu, Eliane Caffé
Elenco: José Dumont, Nelson Xavier, Rui Resende, Gero Camilo, Nelson Dantas, Alessandro Azevedo, Maurício Tizumba, Benê Silva, Matheus Nachtergaele, Altair Lima e Luci Pereira
Duração: 100 min.
Onde assistir: YouTube

Ítalo Oscar Riccardi León é professor do curso de Letras/Espanhol da UNIFAL-MG desde 2009. Formado em Letras e Literatura, com especialização em Comunicação e Semiótica, o docente é mestre em Educação e doutor em Estudos Literários. O docente participou da organização do documentário Histórias de quando a água chegou… Um resgate literário/cultural dos relatos orais surgidos com a construção da barragem de Furnas e da edição comemorativa de 10 anos do Cineclube UNIFAL-MG: espaço de formação cinematográfica, cultura e cidadania. Em parceria com o Jornal UNIFAL-MG, atualmente, coordena esta coluna literária Literatura pelas Bordas.
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