A formação do capitalismo no Brasil tem como traço histórico particular o passado escravista, que submeteu ao trabalho forçado a população indígena e, posteriormente, a população negra transplantada da África. Durante aproximadamente 400 anos, a discriminação racial era o fundamento que atravessava todas as instituições e dava suporte ao edifício socioeconômico e político da formação social. Por essa razão, não era crime ser racista. Ao contrário, a opressão racial era a regra que orientava as relações sociais.
Depois da Abolição e do processo de modernização da produção, o trabalho escravo se tornou residual, dando lugar à predominância do trabalho livre. Se partíssemos de uma concepção simplista da História, poderíamos imaginar que o tempo seria um aliado na superação da desigualdade racial. No entanto, 136 anos após a Abolição, o racismo não só continua estruturando a sociedade brasileira, como parece se apresentar dia após dia de forma cada vez mais despudorada. Apesar de a nossa Constituição Federal de 1988, no seu art. 5° inciso XLII, determinar que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível sujeito de reclusão nos termos da lei”; não obstante a educação antirracista, presente, por exemplo, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/1996), onde em seu artigo 26-A determina que “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”; e a despeito das políticas de inclusão, como a política de cotas raciais nas universidades do Brasil (Lei nº 12.711/2012 e Lei nº 14.723/2023), a opressão racial continua sendo uma realidade no país. O racismo continua vivo. Por quê?
Não é incomum que a herança escravista seja considerada a principal responsável pela perpetuação do racismo. No entanto, ainda que o passado histórico seja peça-chave para explicar o tempo presente, a escravidão por si só não é capaz de desvendar integralmente a apropriação da opressão racial feita pelo capitalismo, e, em particular, pelo capitalismo dependente. Fernandes (2021), ao examinar o tema da integração do negro na sociedade competitiva pós-abolição, observou que a ordem capitalista não foi estruturada dentro de uma perspectiva inclusiva do agente do trabalho da antiga “sociedade de castas”. O sujeito escravizado vinha de um sistema opressor que o desumanizou e retirou dele toda a capacidade de organização social, instrumento necessário ao processo de transição para a sociedade de mercado. Segundo o sociólogo brasileiro (Fernandes, 2021), a ausência de laços de interdependência, de solidariedade e de uma família plenamente constituída originou um sujeito anômico e mal integrado à nova ordem. O pensador brasileiro busca enfatizar, portanto, que não foi a escravização que determinou o destino dos sujeitos libertos, mas sim a forma como ocorreu a sua inserção no trabalho livre, as condições que lhe foram apresentadas e o comportamento da classe dominante diante do sujeito recém-liberto. Esse conjunto de fatores foi responsável por confiscar do negro uma série de direitos e de colocá-lo em posições subalternas na ordem política e no mercado de trabalho livre.
No senso comum, o racismo é, muitas vezes, confundido com a injúria racial. Ainda que o insulto seja uma de suas expressões, o racismo configura-se um fenômeno bem mais abrangente. Segundo Almeida (2021), trata-se de uma forma de organização da sociedade que impacta a representação dos sujeitos sobre a própria sociedade. Em outras palavras, a desigualdade que diferencia brancos e não brancos no mercado de trabalho, na configuração da população carcerária, nos padrões de dramatização dos sujeitos negros apresentados pela indústria cultural, entre outros aspectos, impactam a maneira como os sujeitos, representam o mundo social, estabelecendo uma espécie de tautologia sistêmica: negros ocupam lugares subalternos na sociedade, o que leva a uma representação do mundo onde os lugares dos negros são os subalternos. O autor (Almeida, 2021) chama de racismo estrutural, entre outras coisas, a reprodução das desigualdades raciais e a naturalização dessas desigualdades, a percepção maquinal de que os lugares sociais ocupados por brancos e negros são “naturais” ou “autênticos”, não fazendo parte de uma articulação sistêmica de opressões.
No Brasil, a desigualdade racial se evidencia nas estatísticas referentes à ocupação, postos de trabalho e salários de brancos e não-brancos. Segundo relatório do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), mesmo os negros representando 56,1% da população em 2023, a taxa de desocupação destes foi de 9,5% no 2º trimestre de 2023, valor este 3,2 pontos percentuais maior do que a da taxa observada para a população de não negros, a saber, de 6,3%, conforme pode-se observar na Figura 1. Outro dado que exemplifica a dimensão da desigualdade racial presente na taxa de desocupação dos trabalhadores brasileiros é que, em 2023, “embora representem 56,1% da população em idade de trabalhar, os negros correspondem a mais da metade dos desocupados (65,1%)”, segundo informações do DIEESE (2023, p. 2).
Figura 1 – Taxa de desocupação por raça/cor no Brasil no período de 2019 (2º trimestre) a 2023 (2º trimestre)
Quando inseridos no mercado de trabalho, no entanto, os negros ocupam postos de trabalho precários e/ou desprotegidos (empregados sem carteira + conta-própria/empregadores que não contribuem para a Previdência + trabalhadores familiares auxiliares). No segundo trimestre de 2023, a proporção de ocupados em trabalho desprotegido no Brasil, por exemplo, foi de 34% para homens não negros, contra 46% para homens negros, e de 34% para mulheres não negras, contra 47% para mulheres negras, dados estes que evidenciam claramente a discriminação racial (e de gênero) existente no país.
Ademais, nos dados presentes na Tabela 1, a proporção de negros, sejam homens ou mulheres, em ocupações sem carteira de trabalho assinada, no segundo trimestre de 2023, foi maior do que a de não negros. No setor privado, a proporção de negros empregados nessas condições, no segundo trimestre de 2023, foi de 17,8%, para homens negros, e de 11,1%, para mulheres negras, valores estes superiores aos observados para a população não negra, a saber, de 12,4%, para homens, e de 9,7% para mulheres (Tabela 1).
Tabela 1 – Distribuição dos ocupados por posição na ocupação, segundo cor/raça e sexo, no Brasil no 2º trimestre de 2023
A desigualdade racial também se expressa na maior presença dos negros no mercado informal, visto que pessoas negras receberam, no segundo trimestre de 2023, rendimento médio mensal inferior ao auferido pelos não negros, como é possível observar na Tabela 2. No caso das trabalhadoras domésticas negras, trabalho ocupado por uma em cada seis (15,8%) mulheres negras, segundo dados presentes na Tabela 2, o rendimento médio auferido por elas, no segundo trimestre de 2023, foi de apenas R$ 904, por mês, para as trabalhadoras sem registro em carteira, valor este R$ 416 abaixo do salário mínimo então vigente no período, a saber, de R$ 1.320. Para as trabalhadoras domésticas não negras, sem carteira de trabalho assinada, tal rendimento médio mensal foi de R$ 1.093, superior, portanto, ao das mulheres negras, mas ainda assim também inferior ao salário mínimo (Tabela 2).
Em todas as posições na ocupação, presentes na Tabela 2, é possível observar que os negros receberam, no segundo trimestre de 2023, rendimento médio mensal inferior ao dos não negros, sendo que, no caso da posição empregado no setor privado sem carteira assinada, essa diferença salarial foi de 44,6%. Por fim, em termos gerais, os negros ganharam, no segundo trimestre de 2023, em média, 39,2% a menos do que os não negros (Tabela 2), o que claramente evidencia um tratamento diferenciado no mercado de trabalho, e mais um entre vários obstáculos enfrentados pelos sujeitos negros na sociedade.
Tabela 2 – Rendimento médio mensal do trabalho principal, segundo raça/cor e sexo, no Brasil no 2º trimestre de 2023 (em R$)
Essa desigualdade entre negros e não negros nas funções produtivas pode ser observada também em outras dimensões da sociedade, tais como na representação política, no sistema judicial, no sistema tributário e na formação educacional. No entanto, o mapa da desigualdade racial na dimensão econômica apresenta algumas pistas para respondermos a pergunta inicial: por que o racismo persiste na sociedade brasileira, mesmo não sendo legalmente institucionalizado?
Fraser (2024) afirma que nunca houve um modelo de capitalismo sem o componente de opressão racial. Ela explica essa ideia da seguinte maneira. O capitalismo se organiza pela combinação de dois elementos distintos, mas que estão imbricados no processo de acumulação: a expropriação e a exploração. No período da acumulação primitiva, os países do centro expropriavam os territórios racializados, se apropriando de terras, riquezas e força de trabalho, pilhagem fundamental para a organização do sistema de produção. Esse momento gerou subjetivações raciais, que se converteram em hierarquias dominantes – entre europeus e nativos, indivíduos livres e escravos, brancos e negros. O surgimento do Estado capitalista, além de prolongar a relação de apropriação da periferia pelos países do centro, estabeleceu a distribuição de direitos, separando, de forma seletiva, aqueles que deveriam ser explorados dos que deveriam ser expropriados. Em outras palavras, o Estado passou a conferir status de cidadãos a trabalhadores livres, enquanto designava à outra parcela de trabalhadores expropriáveis a condição de ilegais, refugiados, prisioneiros, dependentes ou nativos, estabelecendo por meio da política a combinação entre expropriação e exploração para servir à acumulação econômica. O critério que realiza a separação entre o sujeito da exploração e o sujeito da expropriação, é, segundo a mesma autora (Fraser, 2024), baseado nas subjetivações racializadas.
As formas de espoliação se renovaram ao longo do tempo. Hoje, o espólio pode ser tanto material (terras, animais, trabalho, ferramentas, depósitos minerais e energéticos), como pode ser a liberdade, a formação intelectual, os próprios seres humanos, suas capacidades sexuais e reprodutivas, seus filhos e os órgãos de seus corpos (Fraser, 2024). No entanto, é possível considerar que os sujeitos racializados, que são os mais expropriados, são majoritariamente os mais criminalizados, os moradores dos territórios mais precários, os trabalhadores que ocupam as funções laborais menos regulamentadas e são os mais vulneráveis ao endividamento. Em síntese, “[o] racismo moderno encontrou uma âncora resistente na estrutura profunda da sociedade capitalista” (Fraser, 2024, p. 75).
No capitalismo financeiro, a diferença entre sujeitos expropriados e sujeitos explorados se tornou menos demarcada. No entanto, a preservação da diferenciação de status político baseada na subjetivação racial permite que a desigualdade racial estruture a divisão do trabalho e mantenha a conformação de níveis diferenciados de expropriação, além de, evidentemente, manter a classe trabalhadora dividida.
No caso do Brasil, os dados publicados acima revelam a disparidade quanto à ocupação, desocupação e rendimento médio de brancos e não brancos. Qual seria a explicação para esse fenômeno? Retomando tudo o que foi dito, o passado escravista foi responsável pelo continuum histórico que constituiu a classe trabalhadora da sociedade competitiva a partir do processo de subjetivação racial, com base num padrão classificatório que estabeleceu quem trabalhava (negro) e não trabalhava (branco) (Oliveira, 2021). No entanto, a escravidão não explica como o capitalismo se beneficiou das hierarquias racializadas. Fraser (2024) esclarece que o racismo está entrelaçado com o processo de acumulação capitalista, sendo um componente central do processo de reprodução das relações de produção. Se o racismo estrutural se perpetua, tanto na sua dimensão material quanto ideológica, é porque constitui a engrenagem do funcionamento do capital.
Uma vez que o capitalismo não existe sem o racismo, o combate à opressão racial não deve mirar somente atitudes ou vontades individuais. Ainda que toda a educação antirracista seja importante; ainda que toda e qualquer política de inclusão seja primordial; e ainda que toda forma de racismo deva ser punida, nada será o bastante sem o enfrentamento de estruturas mais profundas do capital.
Referências
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 12 ago. 2024.
BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>. Acesso em: 12 ago. 2024.
BRASIL. Lei nº 14.723, de 13 de novembro de 2023. Altera a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, para dispor sobre o programa especial para o acesso às instituições federais de educação superior e de ensino técnico de nível médio de estudantes pretos, pardos, indígenas e quilombolas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio ou fundamental em escola pública. Disponível em: <https://planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14723.htm>. Acesso em: 12 ago. 2024.
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). As dificuldades da população negra no mercado de trabalho. Especial 20 de novembro – Dia da Consciência Negra – 17/11/2023.bSão Paulo: DIEESE, 2023. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2023/conscienciaNegra2023.pdf>. Acesso em 29 jun. 2024.
FERNANDES, Florestan. (2021). A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021.
FRASER, Nancy. FRASER, Nancy. Goela Abaixo: por que o capitalismo é estruturalmente racista. In: Capitalismo Canibal. Como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso. São Paulo: Ed. Autonomia Literária, 2024.
OLIVEIRA, Dennis de. Racismo Estrutural. São Paulo: Dandara Editora, 2021.
Janaina de Mendonça Fernandes é professora do curso de Administração Pública do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG e membra do programa de extensão “Dandara” da Universidade. Graduada em Composição Paisagística pela Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ e em Administração pela Universidade Estácio de Sá, possui mestrado em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ e doutorado em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas. A professora também possui pós-doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela UFF. Temas de interesse: políticas públicas participativas, políticas migratórias de refúgio e relações étnico-raciais e de gênero.
Kellen Rocha de Souza é professora do curso de Ciências Econômicas do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG e membra do programa de extensão “Dandara” da Universidade. Economista formada pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), possui mestrado e doutorado em Ciências (Economia Aplicada) pela Universidade de São Paulo (ESALQ/USP). Temas de interesse: Economia, com ênfase em Economia do Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico.
Vanessa Tavares Dias é professora do curso de Bacharelado em Ciência e Economia do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG e membra do programa de extensão “Dandara” da Universidade. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem mestrado em Sociologia e Antropologia pela UFRJ, e doutorado em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos pela UERJ. Temas de interesse: Sociologia Política, com ênfase em estudos sobre Estado, marxismo, ideologia e hegemonia.
As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas