
Quando entramos no universo das reflexões sobre como a filosofia enxerga a tecnologia, percebemos na história desta ciência a tentativa recente e bem-sucedida, mas pouco divulgada, que busca jogar luzes na conflituosa relação entre o ser e a técnica.
É assim na obra “Meditación sobre La Técnica” de 1939 do autor espanhol José Ortega y Gasset (1883 – 1955), ou em “A questão técnica” lançada em 1959 pelo alemão Martin Heidegger (1889 – 1976), ou ainda em “A alma na época técnica” do também alemão Arnold Gehlen (1909 – 1976).
Todos, a despeito da diversidade de pensamento, fluem em alguns consensos. Para eles, técnica e tecnologia não se separam. São conceitos de uma mesma realidade, aquela que ao mesmo tempo é própria do ser humano e que busca dominar o que está à sua volta, num movimento que gira na órbita: menor esforço – maiores resultados.
Eles também concordam que a história da evolução tecnológica é feita de fases. E há um marco divisório, que em Heidegger e Gehlen está bem explícito e em Ortega y Gasset subentendido. As ideias dos autores dividem a tecnologia entre antes e depois do período que compreende o Iluminismo e a Revolução Industrial.
Até esse intervalo da história da humanidade, os autores concordam que produzir era estar em contato com a terra, com os recursos naturais. Esse contato não era um simples aproveitar, exigia cuidado. Cultivar era cuidar para continuar cultivando, produzindo. Um período em que as restrições técnicas criavam códigos morais inevitáveis.
Ortega y Gasset chama o ser humano de homo-faber, ou seja, produzir é o que nos difere enquanto seres pensantes e não meramente viventes. Assim, ser e fazer se misturam. Com o avanço técnico, o uso da ciência e a percepção quase determinista de uma evolução veloz, veio a noção da perda dos limites. O ‘fazer’ então é ilimitado. Onde a vastidão do ‘tudo possível’ lança o ser numa miríade de alternativas que o aproxima do ‘nada ser’. Parecemos viver num mundo onde tudo é possível, o que torna o tudo poder em tudo ser. Indefinições que, com a mesma velocidade nos lançam na infinitude de possibilidades, também nos atormentam com o efeito paralisante das infinitas alternativas.
Quem nunca abriu algum aplicativo de rede social, ou o próprio celular e minutos depois se deu conta que não sabia mais o motivo original de sua iniciativa? Exemplo simplório para retratar um pensamento robusto. Assim, justificava o filósofo espanhol na década de 1930 do século passado que paradoxalmente quanto mais se avança tecnologicamente mais se experimenta o vazio existencial.
Para Heidegger, a evolução tecnológica pós-Iluminismo, pós-Revolução Industrial mostrou que a terra é máquina em potencial. Ela está no estado que ele batizou em alemão de bastard, ou seja, disponível. Segundo Alberto Cupani, autor brasileiro que analisa esses e outros filósofos, a evolução técnica, em Heidegger, nesta fase, mostra que “sem deixar de ser um desabrigar, ela é um desafiar”. Desafia-se os limites. Desafia-se o impossível. Para Heidegger, tudo o que a técnica toca se torna disponível, se torna recurso. Não raro o uso das expressões ‘recursos humanos’ ou ‘capital humano’ são bastante difundidas. Para o alemão, a técnica moderna tem como premissa possível o esgotamento também do indivíduo enquanto recurso. A realidade técnica tende senão deixar de pressupor o humano, ao limitá-lo o máximo possível.
Arnold Gehlen navega por águas semelhantes. Mas desce até as profundezas das relações. Para este alemão, a humanidade ao longo da história passou inúmeros milênios presa no eixo controlar recursos – prever resultados. Esse movimento contínuo intensificado na modernidade pelo avanço tecnológico fez com que nós lidássemos com a realidade a partir de lógicas técnicas. Mas alerta, a essência da técnica não é técnica, é humana, diz o autor. Portanto, lidar com os humanos com paradigmas técnicos trouxe ansiedade, subjetivismos exacerbados, um senso deturpado da realidade, vivências intermediadas entre outras exorbitâncias, sugere Gehlen. Tais considerações sobre o real, ou seja, essa forma de ver a realidade leva o ser a tomar decisões que o precipitam em atitudes equivocadas, para o autor.
Ao ter contato com esses e outros pensadores, pode nos incomodar o fato de parecer que se está lutando contra o natural movimento do tempo. Se está se deslocando da realidade em busca de um passado idealizado. Retroagindo na realidade em busca de um tempo tão idealizado quanto inexistente. E que é ao mesmo tempo distantemente melhor. Enfim, uma luta contra o progresso.
A questão que se impõe diante de um mundo altamente tecnológico não é se aceita-se ou não a vivência da tecnologia no dia a dia das pessoas. Isso já está posto. Ou imposto. É inexorável. A tecnologia avança implacável em nosso cotidiano.
O objeto de reflexão não é tão simples. Não há como negar e nem se esconder de um mundo que gira ao sabor da técnica. Seria como defender um indivíduo alienado de seu tempo e contexto social, ali no limite entre o deslocamento e a negação absurda.
O que se impõe e faz a reflexão dos autores atual, verdadeira e proveitosa é vivermos o mundo tecnológico sem ingenuidade. Sem achar que a tecnologia também não é política, como defendem autores como Andrew Feenberg, que desenvolveu o conceito de ‘tecnopoder’. Nessa ideia, temos que a tecnologia nunca é imparcial. Sempre atende, em um ou mais aspectos de sua utilização, às tendências socioeconomicamente dominantes.
Refletir sobre os limites da tecnologia é utilizar da reflexão histórico-filosófica como remédio para um mundo que, ao convidar para o banquete do momento, não alerta sobre os riscos da intoxicação; antes se aproveita dela para sua própria expansão.
Pode-se pensar, nessa linha de se proteger das doses cavalares de tecnologia, que os indivíduos sempre estiveram conectados. E das mais diversas formas, como ensina o recente método da História Global, criada no início dos anos 1990 pelo historiador indiano Sanjay Subrahmanyan. Os contextos históricos podem ser lidos através das conexões entre povos e sociedades. Estas ligações aconteciam (e acontecem) por meio do comércio, de objetos, de ideias, de livros, de correntes de pensamentos, de tendências de comportamento, modelos econômicos, pela arte etc.
Uma das muitas questões é, por que diante de inúmeras formas de se conectar, estamos preferencialmente optando pela conexão tecnológica? Aliás, ela é de fato conexão? Ela forma alianças razoavelmente concretas e seguras?
Por outro lado, podemos nos perguntar também, quais os valores que esse tipo de conexão traz junto de si? A quem favorece de fato esse modelo de rede interligada que tem se tornado prevalecente, entre nós? Há efeitos colaterais sobre seu uso? Quais? Já os senti? Por que não nos impomos esses tipos de perguntas? Estamos mesmo incluídos nesse novo mundo?
O fato é que na tal correria do dia a dia, soterrados pela avalanche de estímulos vindos dos celulares, o mundo gira e não paramos para perguntar por que seguimos nessa estrada.
A humanidade está sendo lançada contra desafios inéditos. Se antes as impossibilidades técnicas nos garantiam um afastamento de certos paradoxos e nos confortavam diante do intransponível, agora já não podemos nos dar a esses luxos se quisermos uma vida mentalmente feliz e autônoma. Agora podemos alcançar o antes inalcançável tecnicamente. E vamos nessa veloz caminhada de encontro ao impacto sem o amortecimento da reflexão? Parece danoso abrir mão dessa ferramenta humana tão ancestral quanto atualmente necessária.
Pensar sobre a tecnologia é, portanto, não uma ode ao passado. Uma fuga imaginária para um tempo que não existe mais. É enfrentar o correr frenético dos dias com destemor. É rejeitar o perigo escondido nas entrelinhas tão habilmente formatadas para não serem lidas de um mundo que se transforma diante de nós.
Tecnologia é um termo polissêmico. Abriga inúmeras realidades. Ela fascina, não há dúvidas. Aproxima. Reduz espaços. Reúne. Salva. Mas também subverte valores. Aterroriza. Provoca doenças antes menos incidentes. Mexe com a mente incitando intolerância. Tal qual fogo, ela transforma, alimenta e aquece, mas também destrói.
Pensar a tecnologia é não ser ingênuo. É retirar dela o que ela tem de melhor sem abdicar de condenar seus limites. É não a transformar em hegemônica em nossas vidas. É olhar mais nos olhos do que para a tela. É perceber, preferencialmente, a respiração antes dos filtros. Paradoxalmente, enquanto escrevo, a bateria do celular e do notebook se acabam e precisam ser recarregadas. A natureza em geral e a nossa, em particular, também precisam ser recarregadas e não há tomadas elétricas para isso, é preciso tempo, paz e reflexão.
Pensar filosoficamente a tecnologia é se reconectar consigo e com o que há de humano em cada uma das nossas relações, essa é nossa verdadeira fonte de existência. Já parou hoje para olhar o céu? Já sentiu a terra debaixo de seus pés? Já se perguntou sobre si mesmo em busca de autoconhecimento. Tecnologia pode ajudar, só não pode ser a dona de todo nosso espaço-tempo.
Referências
CUPANI, Alberto. Filosofia da Tecnologia. Florianópolis: UFSC, 2016.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected History: Essays and Arguments. California-EUA: Verso, 2022.

Lucas Magalhães Costa é doutorando em História e Culturas Políticas pela UFMG, mestre em História Ibérica pela UNIFAL-MG e jornalista.
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