Se tributo não é multa/pena, o que ele é e para que serve?

Segundo o art. 3º do Código Tributário Nacional (CTN) – que, nunca é demais lembrar, embora da década de 60, foi materialmente recepcionado pela Constituição de 1988 –, “[t]ributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

Como se observa, tributo, primeiramente, é prestação pecuniária, como tal não podendo ser pago por meio outro que não o dinheiro – com exceção da dação em pagamento de bem imóvel (art. 156, inc. XI do CTN), a qual, muito basicamente, consiste na possibilidade de o sujeito passivo (e.g. contribuinte) extinguir sua pendência tributária mediante o oferecimento ao Fisco de bem imóvel.

(Conforme entendimento firmado pelo STF na ADI 1917, aceitar a dação em pagamento de bem móvel configuraria uma espécie de burla no procedimento/princípio licitatório, isto é, na necessidade de a Administração Pública adquirir os bens móveis de que precisa mediante licitação, donde a inadmissão da dação em pagamento de bem móvel a título de pagamento de tributo.)

Historicamente, sabe-se que o Estado podia exigir o pagamento do tributo por meios outros, como, por exemplo, o próprio trabalho do cidadão (pagamento in labore) ou bens in natura (entre nós, bastaria lembrar do imposto colonial denominado quinto do ouro… um dos estopins da Inconfidência Mineira). Portanto, outrora, existiram formas, digamos, mais arcaicas ou rudimentares de satisfação do tributo.

Contudo, atualmente, até para a maior segurança das pessoas em face do Estado-Fisco, não mais se admite a possibilidade de extinção da obrigação tributária mediante a prestação de serviços ou a produção e/ou entrega de bens móveis. Somente o dinheiro – “em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir” (e.g. indexadores) – constituindo-se, via de regra, como meio adequado ao pagamento do tributo.

Em segundo lugar, verifica-se, do texto legal, que o tributo é uma prestação pecuniária compulsória, de modo que, uma vez praticado o fato gerador de um tributo (e.g. importar, exportar, ser proprietário de imóvel urbano, auferir renda etc.), nasce para o sujeito passivo a obrigação de quitar o tributo (e.g. II, IE, IPTU, IR etc.), obrigação esta que, destaque-se, torna-se palpável quando do lançamento do crédito tributário, pois é tão-só com este que a obrigação se determina (e.g. especificação dos sujeitos passivo e ativo, do fato gerador, da base de cálculo do tributo, da data do pagamento etc.), preenchendo os requisitos para poder ser cobrada/exigida.

Até porque a relação jurídico-tributária, fundamentalmente, é senão uma relação de crédito, em que de um lado há o sujeito ativo, o credor (Fisco), e, do outro, o sujeito passivo, o devedor (que, normalmente, identifica-se com a figura do contribuinte).

Assim, realizado o fato gerador, automaticamente nasce a obrigação tributária, a qual se torna exigível quando transformada em crédito via lançamento. Em última análise, a obrigatoriedade ou compulsoriedade em questão decorre do poder de império do Estado, isto é, do poder para fazer valer suas exigências – desde que, por óbvio, nos moldes legais – a despeito da anuência do cidadão.

Todavia, se é certo que a prática deste ou daquele fato gerador concretizador desta ou daquela hipótese de incidência tributária cria, compulsoriamente, para o sujeito passivo, a obrigação de pagar o tributo, não é menos certo que tal acontecimento cria, compulsoriamente, para o agente estatal incumbido da cobrança do tributo (e.g. auditor fiscal), a obrigação de exigi-lo.

Afinal de contas, o direito ao crédito tributário não é do agente, mas da coletividade, a qual logra financiar/custear o Estado, mormente enquanto garantidor e prestador de direitos fundamentais aos bens e serviços comuns da vida, precisamente através das arrecadações ou receitas tributárias – sem prejuízo das demais espécies de receitas públicas, a exemplo das receitas diretas advindas da atuação empresarial do Estado em determinados segmentos econômicos.

Donde se verificar outra característica importante do conceito de tributo tal como definido no art. 3º do CTN, qual seja, a vinculação da atividade administrativa destinada à cobrança do tributo. Pois esta não é discricionária, podendo ou não ser feita conforme os critérios de conveniência e oportunidade, mas sim vinculada (aliás, plenamente vinculada, conforme a dicção da lei), vale dizer, deve-se seguir aquando da ocorrência do fato gerador à maneira de uma consequência inevitável. (Inclusive, se o fiscal não cobra – se ele deixa de lançar a obrigação tributária –, estará sujeito, a depender do caso, a responder civil, penal e administrativamente.)

Avançando, cumpre passar à explicação de uma das mais elementares características do conceito legal de tributo: a ressalva de que tributo não tem natureza de multa.

Por mais que o senso comum assim o sinta, seja pela ausência de educação tributária – no sentido de conscientização crítica do sentido social do tributo no contexto do Estado Democrático de Direito –, seja pelo testemunho diário de um Poder Público que tanto deixa a desejar na prestação de serviços em grande parte suportados pelo contribuinte; por mais que haja essa tendência de tomar o tributo (o imposto, conforme a típica metonímia da linguajem popular) como uma espécie de punição, dizíamos, fato é que o tributo, tecnicamente, não é multa, logo, não é pena. (Aqui estamos trabalhando com o sentido amplo de pena, não com o sentido estrito do direito penal.)

Não fosse por outra razão porque o tributo não tem por pressuposto um ato ilícito, mas, justamente, o financiamento, em última análise, de um Estado voltado à manutenção, ampliação e aprofundamento do patamar civilizatório condizente à dignidade da pessoa humana.

O que significa dizer que o tributo, apesar dos pesares, não tem natureza sancionatória (a não ser assim e seria preciso imaginar o cidadão pagando o tributo por haver cometido, por exemplo, infração administrativa, ilícito civil ou crime), mas sim arrecadatória (ou intervencionista), na medida em que destina-se à viabilizar, sim, “os políticos”, mas também e principalmente imprescindibilidades como “postinhos” de saúde, hospitais, profissionais da saúde, escolas, universidades, suporte ao alunado carente, professores(as), atividades de pesquisa e pesquisadores(as), serviços de segurança pública, prestação jurisdicional em sentido amplo (judiciário, ministério público e defensoria pública), atividades de prestação – ou, de todo modo, de regulação e fiscalização – dos serviços de abastecimento de água, de captação e tratamento de esgoto, de coleta e tratamento de resíduos sólidos, de transporte, serviços sociais de habitação pública e assistência social etc. etc. etc.

É claro que, se o sujeito passivo não paga o tributo ou descumpre alguma outra obrigação tributária (obrigações secundárias, como, por exemplo, a obrigação de emitir nota fiscal), poderá ser multado. Mas aí terá cometido um ilícito, logo, terá praticado precisamente o tipo de fato ensejador/justificador da resposta ou reação sancionatória do Estado.

Motivo pelo qual, frise-se uma vez mais, não há confundir o tributo com qualquer ideia de pena ou multa, mesmo quando esta for tributária, haja vista que, como visto, o pressuposto do tributo é uma coisa (fato lícito relacionado, direta ou indiretamente, ao financiamento do Estado Democrático de Direito), e o da multa ou pena é outra coisa (fato ilícito, como, por exemplo, descumprimento de obrigação tributária).

(Mesmo o IR incidente sobre a renda do traficante não se baseia no ilícito criminal do tráfico de drogas, caso em que a cobrança do IR configuraria uma espécie de sanção. Pois, aqui, o que se considera é o fato em si mesmo, no caso, a renda – que, como tal, é lícita –, a despeito de seu entorno criminoso… pecunia non olet.)

Por fim, não se olvide mais esta característica nuclear do conceito de tributo previsto no art. 3º do CTN: que o tributo deve ser instituído por meio de lei. Com efeito, tal como se passa no direito penal, em que não há crime sem lei anterior que o defina, no direito tributário não há tributo sem lei anterior que o defina, ou, mais amplamente, não há, via de regra, criação/instituição, majoração ou exclusão (e.g. anistia, isenção) de tributo senão mediante lei, aliás, lei em sentido estrito (lei ordinária, lei complementar, lei delegada ou medida provisória).

Dessarte, a despeito do senso comum, eis aí o que vem a ser tributo do ponto de vista técnico-normativo: a) uma prestação pecuniária; b) compulsória; c) que não constitua sanção de ato ilícito; d) instituída em lei; e e) cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Quanto ao mais, poderíamos concluir chamando a atenção para a circunstância de que, fôssemos comunistas, não haveria direito tributário em sentido próprio, pois então o próprio Estado se encarregaria de financiar a si e às suas atribuições mediante recursos hauridos de sua atuação direta e monopolista na economia. Lado outro, fôssemos (neo)liberais, o direito tributário, embora existindo, seria irrelevante – ou, em todo caso, um direito de importância secundária –, dado que limitado ao custeio do Estado de polícia.

Mas como, sobretudo após a Constituição de 1988, somos adeptos do Estado Democrático de Direito, historicamente traduzido em Estado de Bem-Estar Social equilibrador de Capital (Mercado) e Trabalho, o direito tributário tem protagonismo entre nós (como de resto o tem em qualquer lugar do mundo que tenha optado pelo modelo de Estado em questão), prestando-se como um dos principais instrumentos de viabilização dos meios necessários à fruição efetiva dos direitos e de implementação da justiça social na forma de justiça (extra)fiscal.


Referência

ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3. ed. São Paulo, SP: Malheiros, 2015.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra/Portugal: Edições Almedina, 2003.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil/1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. Lei Nº 5.172/1966 (Código Tributário Nacional). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1917. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur5628/false

ONOFRE, Alves Batista Júnior. Manual de direito tributário. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023.


Waldir Severiano de Medeiros Júnior é pós-doutorando em Direito e Justiça (FDUFMG). Mestre e Doutor em Direito e Justiça (FDUFMG). Professor de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG. Consultor Jurídico (OAB-MG 216.370). Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política e Administração Pública.

Renato Rezende Neto é professor de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG, campus Varginha. Mestre em Administração Pública, Especialista em Direito Penal e Direito Médico e Saúde, e Oficial da Reserva do Exército Brasileiro (R2). Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política, Administração Pública.

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