Ser universal e atemporal, independentemente das coordenadas em que foi escrito, é a primeira condição para a grandeza de um livro. O deserto dos tártaros (1945), de Dino Buzzati, é uma dessas obras grandes. E seu valor também se expressa na realização perfeita do enredo, cuja economia o torna um modelo de narrativa moderna. Em qualquer literatura nacional, há pouquíssimos romances desse calibre.
O protagonista é Giovanni Drogo, um militar que acaba de ser promovido a tenente. Nas primeiras páginas, ele viaja para uma região montanhosa de fronteira, onde se localiza o forte no qual deverá servir. A expectativa de um futuro brilhante, a que suas credenciais faziam jus, é toldada por um estranho sentimento: o “pressentimento de coisas fatais, como se estivesse para iniciar uma viagem sem retorno”.
E assim é. Primeiro, ele chega a desconfiar que seu destino, a fortaleza na fronteira, nem existe; um carroceiro com quem conversa no caminho, ao lhe serem pedidas informações sobre a instalação militar, responde que “por estas bandas não existem fortes. Nunca ouvi falar.” A dúvida introduz uma atmosfera a confirmar que realmente havia algo errado com o suposto futuro brilhante de Drogo, aquele em que o valor do jovem tenente seria posto à prova e sua vida em breve ia ser coroada pela prosperidade, encaminhando-lhe dias felizes e tranquilos.
Mas o forte existe, e Drogo chega a ele depois de dois dias de cavalgada, parte desse tempo na companhia de um superior seu, capitão, conhecido no caminho. Decepciona-se, no entanto, com a desimportância da fortaleza, e logo toma a decisão de não permanecer muito tempo ali. Nesse ponto é que começa a parte mais marcante da história, diagramada no tempo narrativo com um perfeito senso de ritmo. “Centenas de homens guardando um desfiladeiro por onde ninguém passaria”, pensa o tenente com desdém, certo de que em breve estaria de volta ao conforto da casa materna.
Ocorre que o funcionamento da corporação militar se dá de tal modo que Drogo vai ficando enredado na situação do local e de seus habitantes. Há um ponto de virada, no qual, depois de semanas de convivência com os companheiros de farda, o protagonista ainda se sente isento de contaminação pela mentalidade dominante entre eles – bem representada pelo sargento Tronk –, de conformismo com um cotidiano absurdo pautado pela espera, igualmente sem sentido, de uma “vaga eventualidade” – que um dia chegassem do norte, onde se descortinava a grande planície deserta, os imaginários inimigos contra os quais o forte devia proteger seu país. Até esse momento, o protagonista pensa estar “fora disso, espectador não contaminado”. Esperava apenas o decurso dos meses ao fim dos quais poderia pedir sua transferência de volta para a cidade.
Isso dependia de um exame médico no qual, estava combinado, seria fraudulentamente atestada sua inaptidão física para permanecer no forte. Mas ele mesmo é quem diz ao clínico do quartel que prefere ficar, dispensando a dispensa. Nessa passagem, marca-se a rendição de Drogo à espécie de sortilégio que impede seus colegas de farda de escapar dali: “já havia nele o torpor dos hábitos, a vaidade militar, o amor doméstico pelos muros cotidianos”. Ou seja, em quatro meses o rapaz estava acomodado à rotina, mesmo considerando-a, no fundo de seu ser, completamente sem propósito. No desfecho, saberemos que houvera nisso um pouco de tapeação da parte dos oficiais superiores; quando Drogo descobrir a mentira e se revoltar contra eles, será tarde demais.
Aliás, ele estará completamente domado já aos 25 anos – ainda antes da metade do enredo. A partir daí, ocorrem vários episódios que chegam, por vezes, a deslocar um pouco a centralidade do protagonista. Há, por exemplo, a morte completamente estúpida do bom tenente Angustina. De passagem, notemos um pequeno cochilo do escritor: ele se esqueceu da capa nova que Drogo havia encomendado ao velho Prosdoscimo, alfaiate do quartel; até o final do livro, não se toca mais no assunto.
Enquanto qualquer movimento bélico parece cada dia mais improvável, chegando mais tarde o forte a ser esvaziado da metade de sua corporação, chega o momento em que o próprio superior do protagonista, aquele Ortiz que ele havia encontrado nas primeiras páginas, aconselha-o, “incrédulo ante a sabedoria das próprias palavras”, a escapar daquela vida enquanto era tempo. Num período de folga, Drogo retorna à cidade e já não se reconhece em nenhum elemento de sua vida anterior: família, amigos, namoradas, nada é capaz de fazê-lo decidir-se a nunca mais retornar ao forte. A verdade é que o mundo lá fora não precisa mais dele.
Mesmo que a planície ao norte, da qual parecia cada vez menos possível surgir a chance de um combate, fosse “desolada, sem sentido e misteriosa”, a vida dos indivíduos comuns, fora dali, também tinha perdido para ele qualquer significado. Drogo estava como que vazio, sem alma. Então, pela primeira vez, duvida de si: “e se realmente estivesse errado? Se fosse um homem comum, a quem por direito não cabe senão um destino medíocre?”.
Haverá a ilusão de um combate iminente. A princípio cético, Drogo acabará aderindo à certeza (alheia) de que os inimigos estão chegando. Depois, assume uma condição paranoica, persistindo sozinho naquela crença, tornando-se motivo de troça até para os jovens soldados. Sim, porque de súbito, um dia, ele percebe que se passaram 15 anos, embora ainda não se sinta velho, pois “o tempo passou tão veloz que a alma não conseguiu envelhecer”.
No arremate da narrativa, ele realmente já se sentirá velho. Será mesmo, por doente e incapaz, descartado pelos superiores. Aos 54 anos, contemplará a inteireza do logro que havia sido sua vida: ele esperou por algo que talvez nunca chegasse, mas, quando finalmente chega, não é mais para ele. Bela metáfora da condição humana. Enorme romance.
Título: O deserto dos tártaros
Autor: Dino Buzzati
Tradução: Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade
Gênero: Ficção | Romance
Ano da edição: 2020
ISBN-10: 6556401285
ISBN-13: 978-6556401287
Selo: Nova Fronteira
Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.
As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas