Até quem jamais leu um livro de Honoré de Balzac sabe, em geral, que o adjetivo balzaquiana é usado para designar uma mulher madura. Essa, por assim dizer, mitologia radica escassamente num único capítulo do romance A mulher de trinta anos (1834), que está entre os mais conhecidos títulos da volumosa obra do escritor francês.
Dois capítulos muito mais longos, “Primeiras faltas” e “Dois encontros”, é que realmente dão tom ao romance. E esse tom é um tanto dissonante; A mulher de trinta anos exemplifica mais os defeitos que as qualidades do autor, inquestionavelmente um dos mais importantes da literatura francesa. A ambição desmedida fez de Balzac um ficcionista muito irregular, ao mesmo tempo capaz de oferecer a mais ampla (e realista) visão da sociedade francesa no período que vai da Revolução (1789) até a segunda proclamação da república (1848) e alguns enredos inverossímeis envolvidos naquela asfixiante prolixidade característica do Romantismo; nessa época, a maioria dos escritores ainda não havia conseguido se livrar de uma tradição que considerava retórica e estilo quase sinônimos. Veja-se no Brasil o caso de José de Alencar, que no entanto construía enredos melhores que os de Balzac.
A protagonista é Júlia, que na primeira cena está assistindo, junto com o pai, a um desfile militar de Napoleão. A maioria dos personagens principais pertence a certa nobreza ligada a um militarismo egresso das brumas da Idade Média. O drama, nessa primeira cena, reside em que o pobre pai sofre ao perceber que sua filha está apaixonada pelo coronel d’Aiglemont, considerado por ele um pulha. E tem completa razão, como demonstrará o restante da história – pelo menos até o penúltimo capítulo, no qual d’Aiglemont se redime por uma vaga aventura comercial na América, de onde retorna levando uma fortuna que haveria de recuperar a “felicidade” de sua família.
Júlia, a teimosinha, logo se arrepende, pois de fato d’Aiglemont era o que hoje chamamos um perfeito mané. Entretanto, conseguiu fazer carreira sob Napoleão e continuou gravitando o poder depois do desastre de Waterloo, integrando-se ao regime que restaurou a monarquia e, nele, chegando a general. O casal tem uma filha, com a qual a mãe logo passará a ter relação problemática, já que projeta na pobre menina sua frustração de mulher infeliz no matrimônio. É aí que aparece um jovem inglês candidato a seu amante, mas o código moral da época não permite que eles cheguem às vias de fato – ficará tudo no plano de uma discurseira sentimental sem fim, e no final o coitado morre pendurado na janela do quarto de Júlia, mas nada indica que tenha havido entre eles qualquer contato mais ousado. Fica difícil, para o leitor atual, até mesmo imaginar no que poderia consistir a “profundidade espantosa dos delitos conjugais” mencionada a propósito disto: apaixonada por Lord Grenville, o dito moço inglês, Júlia promete a si mesma não mais se entregar à “prostituição do casamento”, ou seja, deixar de ir para a cama com o desprezível e desprezado general d’Aiglemont. Não podemos esquecer: ela detém o título de marquesa e sua correspondente fortuna, mais adiante desbaratada pela incompetência e do marido, também viciado no jogo.
Porém, na segunda metade do enredo, numa cena bastante avulsa e desconectada dos fatos narrados anteriormente, a menina problemática – chamada Helena – assassina seu irmãozinho por ciúme, empurrando-o para dentro de um rio. A mesma garota, mais para o final da história, resolve fugir com o diplomata Vandenesse, que havia sido o segundo amor extraconjugal – e, ao que parece, também platônico – de Júlia. Reaparecendo no penúltimo capítulo na condição de mulher de um corsário (o próprio Vandenesse), ela ganhou ares de verdadeira deusa, mas regressa miserável no último capítulo, tendo perdido três de seus filhos, para reencontrar a mãe quase moribunda.
Essa tremenda embrulhada poderia ser muito interessante, até mesmo empolgante, se o enredo fosse desenhado com habilidade. Mas Balzac escrevia demais, e com pressa. Além disso, seu narrador não perde a oportunidade de fazer discursos, cuja sentimentalidade exagerada é, em geral, contraditória às ações dos personagens. Assim, sem que o enredo apresente para isso razões psicológicas críveis, a mesma Júlia que se havia portado heroicamente em sua virtude aparece, no final, protagonizando um capítulo intitulado “A velhice de uma mãe culpada”. Culpada de quê? De haver-se casado com um homem desprezível, por sinal tornado capaz daquele “heroísmo” que consistia em ganhar dinheiro para reparar sua incompetência como administrador? Culpada de haver-se apaixonado por outros dois homens, cujos encantos eram tão contrastantes com a mediocridade do marido, e aliás, aos quais não se entregou fisicamente, a menos que essa parte tenha sido deixada à dedução do leitor?
Mais fácil será, para este, adivinhar Vandenesse no assassino que aparece para a família d’Aiglemont refugiada no campo, obrigando o general a escondê-lo dos gendarmes que o perseguiam – mesmo não havendo muita lógica em que o elegante diplomata holandês tenha virado tal facínora. Igualmente, o leitor só não deduzirá se for muito distraído que o mesmo Vandenesse é o chefe dos corsários que afundam o navio no qual d’Aiglemont trazia seu milhão de francos amealhados na América.
Difícil mesmo será entender por que Júlia, tendo prometido solenemente a si mesma nunca mais se entregar ao marido, na altura do enredo em que Helena resolve fugir com o criminoso já havia fabricado com a ajuda dele outro casal de filhos depois daquele menino morto pela irmã – do que, aparentemente, ninguém no enredo jamais desconfiou.
Uma coisa é certa: nada ficaremos sabendo a respeito da psicologia de uma mulher de trinta anos, a não ser trivialidades discutíveis como o fato de “quase todas as mulheres que têm cabelos compridos” serem pálidas. Se A mulher de trinta anos apresenta uns 20 ou 30 por cento de boa ficção, o mais provável é que a porcentagem restante baste para decepcionar tanto o leitor quanto decepcionou este resenhista.
Título: A mulher de trinta anos
Autor: Honoré de Balzac
Tradução: Rosa Freire Aguiar
Gênero: Romance | Clássicos
Ano da edição: 2015
ISBN: 978-85-8285-011-4
Selo: Penguin-Companhia
Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.