É mais fácil escrever sobre o amor estando longe dele. Ainda assim, não há garantias de que seremos capazes de traduzi-lo; pois, o amor… o que é mesmo o amor? Bom, todo mundo sabe. Ou finge que sabe. A verdade talvez seja que ninguém, efetivamente, sabe. São tantas teses e tantos achismos que, ao fim e ao cabo, um poeta constata que o amor real sobre o qual discorria o Dr. Brian Weiss é definitivamente intraduzível.
um criptograma, o amor
o que me é indecifrável.
Em Sem deuses ou amores, D’Angelo Rodrigues apresenta uma variada e exitosa coletânea de poemas através dos quais percorre universos comuns e idílicos. Não há deuses ou amores que não sejam letras, vocábulos, neologismos, prosódias, melodias ou artes.
sua música, mais
que sublime
redime e salva.
Sua poesia nos remete às adoráveis “coisas muito esquecidas” de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, particularmente às artes de cativar e criar vínculos. Curiosamente, tudo o que pressupõe vínculos define boa parte do ofício do escritor, que é, por excelência, o mestre dos vínculos místicos. Seu livre pensamento, sua inspiração e sua licença poética lhe permitem gracejar com as palavras ao seu bel-prazer, escrevendo-as em ambigramas ou anagramas; com acrósticos ou mesósticos, sem regras ou limitações, em língua pátria, estrangeira ou ambas.
nada ético
mas muito etílico.
Nesse sentido, D’Angelo Rodrigues se mostra um verdadeiro fidalgo engenhoso que, com seus triquestroques, dedica as páginas de sua obra a uma miopia (intencional) à versificação, à estrofação, às métricas e às rimas perfeitas. Ou, quem sabe, muito mais verossímil, ele tenha se assumido como o fabuloso mago que é, que fecha os olhos, respira calmamente e traz ao mundo justaposições e aglutinações sui generis, engendradas no fundo de sua serelepe alma.
olhos sobre telas
natureza amorfa
rabiscos de pena
lautos retratos.
Deixando de lado o tom quixotesco da poesia de D´Angelo, uma leitura atenta nos permite meditar sobre uma situação que, atualmente, afeta quase todos os continentes: quanto maior a velocidade digital, maior o vazio existencial, o imediatismo e o descarte rápido, inclusive de pessoas. De um século para o outro, em um piscar de olhos, caímos, tal qual Alice, em um buraco onde habitam coelhos apressados, rainhas tiranas e seres nonsense – um mundo onde todos são chamados pelos mesmos nomes, o que, se por um lado evita constrangimentos, por outro, despersonaliza indivíduos e desumaniza os relacionamentos mais íntimos e mais bonitos.
buscando dulcimeras
cavalgalopo em tresvazios
queixoteimo pela vida.
A reflexão é contemporânea e fundamental: o que significa viver sem amor nos dias de hoje em que dizemos que amamos tudo, chamamos todos de “amados” e acreditamos que todo mundo é igualmente merecedor de um like e de um “eu te amo” diário? Sem um amor de verdade, aquele amor mágico e mítico… Ora, não seria melhor viver sem amor? Aliás, no tocante a esse tal amor verdadeiro, tão sonhado e desejado, quem estaria disposto a de fato lutar e se sacrificar por ele ou a implorar aos deuses para que Cupido entre em ação com algo semelhante, porém, claro, um pouco menos atrapalhado do em Sonho de Uma Noite de Verão?
o amor sendo chave
e passaporte para
todo possível sonhar.
Já é de domínio público o fato de que a maior parte das pessoas tem se mostrado mais interessada em dopamina do que em ocitocina, e isso nada mais é do que o brain rot moderno, em que estão ausentes conversações fluidas e adoçadas por um vocabulário elegante. Há um “déficit” de atenção e de conversas sinceras, enfim, uma falta de conexão humana sem precedentes. Basta uma análise rasa de diálogos, escritos ou falados, para se apurar que, quase sempre, as frases proferidas são tão evasivas e manipuladoras quanto as de Clark Rockefeller.
desnecessários os diálogos
basta do ocaso um close-up
para o sucesso avant-première
tal a mise-en-scène da luz.
Tal realidade, felizmente, não contamina a escrita de D’Angelo, muito pelo contrário. A cada lambida de dedo e virada de página, todo o encantamento próprio dos sonhos e das visões fantásticas brinca espirituosamente com o leitor por meio de ousadas metáforas, trocadilhos que nos recordam lunfardos, personagens arquetípicos e homenagens a artistas conhecidos e desconhecidos do grande público, revelando-se como um convite arrebatador rumo a uma jornada emocionante pela imensidão azul do céu e do mar.
Choveu
e o céu nem bleu
nem blue.
Sem deuses ou amores é também, e sem dúvida, um livro extraordinariamente potente para as atividades de mediação de leitura, escrita criativa e poematerapia, uma vez que é mais do que uma experiência literária; é uma aventura “quixoteante”, verso por verso, em que cada palavra forma um intrincado puzzle de crossovers ressignificados.
Quixotes sacerdotes
sendo a mim tão iguais
Cumpre, por fim, registrar uma interpretação audaciosa da obra: são tão poucos aqueles que ainda têm olhos para as primaveras da vida, que quiçá seja melhor ser criatura única e ter uma casa para olhar.
outro jeito não trem
quem não vai jaçanantes
das onze horas
adoniranda na garoa.
Sobre D’Angelo Rodrigues
Mineiro de Pouso Alegre, D’Angelo Rodrigues é profícuo compositor, fotógrafo e autor de várias obras, dentre elas: “Se verdes ou azuis”, “Páginas do Equinócio” e “Uma Testemunha Impassível”.


Título: Sem deuses ou amores
Autor: D´Angelo Rodrigues
Gênero: Poesia
Páginas: 228
Selo: Edição do autor
Ano da edição: 2021

Clarissa Xavier Machado é professora graduada em Letras e Direito, pós-graduada em Tradução e Literaturas Brasileira e Inglesa, e pós-graduanda em Neurociências da Educação. É mediadora de leitura e autora dos livros “Pelas Águas de São Lourenço” e “Buen(os) Aire(s)”. Acadêmica Correspondente da Academia Feminina Sul-Mineira de Letras e membro do Grupo Literário Fonte das Letras. Natural do Rio de Janeiro, vive desde 2017 no Sul de Minas, onde atua na educação básica lecionando inglês.