Você e eu não temos livre-arbítrio e Kelsen explica

A imagem é uma ilustração em estilo minimalista de uma marionete humana sendo controlada por fios. A marionete, com traços simplificados, parece ser uma figura masculina com rosto angular e expressão preocupada. Os fios estão presos às suas mãos e cabeça, sugerindo a ideia de controle externo ou falta de autonomia.
Imagem ilustrativa. (Reprodução/Portal BIG THINK)

Livre-arbítrio como o oposto da lei da causalidade

Kelsen começa sua crítica ao livre-arbitrismo tratando daquela que talvez seja a maior das crenças comuns sobre o livre-arbítrio, a saber: que o livre-arbítrio é o antônimo, o oposto diametral e o antípoda do determinismo causal. Aqui, a crença comum está “correta”, porque todo e qualquer livre-arbítrio, a despeito de sua roupagem terminológica e sotaque doutrinário, consiste exatamente nisto: numa suposta vontade absolutamente livre das amarras da determinabilidade, máxime da determinabilidade causal, ou, o que dá no mesmo, numa suposta vontade dotada da capacidade de, por si só, prestar-se como causa de efeitos, sem que, contudo, ela própria possa ser vista como efeito de causas (KELSEN, 2006, p. 104). A essência da ideia de livre-arbítrio repousa nessa pretensão a uma vontade humana absolutamente desvencilhada do determinismo causal e capaz de funcionar como a causa não causada, o ponto originário, o marco zero, de um efeito, seja ele, o agir ou feito humano.

No entanto, para Kelsen, uma tal liberdade da vontade não pode ser concebível e tampouco provada no âmbito da experiência possível, o qual é probabilisticamente regido pelo determinismo causal. Não por acaso, o livre-arbítrio, isto é, a crença numa vontade capaz de se decidir a despeito de qualquer determinabilidade, sempre se fez imaginável como um atributo da alma imortal objeto da ação divina retributiva, logo, como um atributo metafísico-religioso (KELSEN, 2011, p. 56). Portanto, a menos que se queira tomar o sujeito ética e empiricamente responsável como um sujeito religiosa e metafisicamente responsável, não faz sentido, na verdade chega a ser um completo despautério, a suposição – que Kelsen só não diz ser impossível por força do condão probabilístico do seu determinismo causal – de uma vontade absolutamente livre à guisa de fundamento da ética e da responsabilização que lhe vai ligada.

Livre-arbítrio como ficção necessária

A seguir, tem-se a objeção de Kelsen ao argumento do livre-arbítrio como ficção. Trata-se de um argumento que, do ponto de vista científico, sequer mereceria ser levado a sério, já que ele próprio avança a inexistência do seu objeto (no caso, o livre-arbítrio), se o ser humano não tendesse a preferir uma “doce mentira” ou uma “mentira necessária” a uma “verdade inconveniente”, e se pensadores importantes (e.g. Platão, Kant e Vaihinger) não houvessem, cada qual à sua maneira, opinado nessa direção.

Ao contrário do que se passa no argumento anterior, em que a pessoa que o esposa, a despeito do caráter apelativo da ideia livre-arbitrista, acredita piamente na existência do livre-arbítrio (por vezes justamente porque apelativo, como é o caso do credo quia absurdum), no argumento em causa, em que a vontade absolutamente livre é encarada como ficção, quem o esposa demonstra algo de hipocrisia, desespero ou praticidade, dado que conscientemente racionaliza a “ficção” (no caso, eufemismo para “mentira”, ou, no mínimo, “não-verdade”) do livre-arbítrio em prol da viabilização da manutenção da responsabilização ética retributivista.

Nesse diapasão, a despeito da mais que provável inexistência de algo como o livre-arbítrio, as pessoas, ou, de todo modo, a maioria das pessoas, precisam acreditar que são dotadas de livre-arbítrio e serem por esta crença determinadas, sob pena de se comprometer o sistema ético convencional.

Como se nota, há um quê de elitismo nessa posição, afinal, o livre-arbítrio deve ser conscientemente mantido como ficção apenas pelo ilustrado, o ignaro componente do rebanho social devendo continuar a acreditar que possui livre-arbítrio.

Livre-arbítrio como consciência ou sentimento subjetivo

Avançando, outro argumento a favor do livre-arbítrio arrostado pelo jusfilósofo de Viena é o de que possuímos livre-arbítrio porque, subjetivamente, sentimos que o possuímos. Todavia, sentir ou ter a impressão de que algo existe ou que seja deste ou aquele modo não necessariamente significa que este algo realmente existe ou que realmente seja deste ou daquele modo. O que interessa, para fins de conhecimento, é a verificação objetiva dessa consciência ou concepção subjetiva de um querer absolutamente livre das amarras da determinabilidade que não infrequentemente acossa o ser humano em suas introspecções. E, segundo o mestre austríaco, não há nada na consciência (afora o sentimento de uma vontade expansiva) correspondente a uma vontade absolutamente livre: antes, só o que a psicologia empírica – que se coloca sob o signo da causalidade (KELSEN, 2011, p. 56) – verifica objetivamente é um psiquismo que, conquanto sumamente complexo, opera segundo leis próprias, por mais peculiares que sejam. De modo que, do fato de uma pessoa ter uma concepção subjetiva de que ela é, por exemplo, bonita, forte, inteligente e municiada de livre-arbítrio, não se segue que, na realidade, ela assim o seja (KELSEN; CAMPAGNOLO, 2002, p. 124-125).

(Destaque-se, por oportuno, que a psicologia evolutiva – cf. WILSON, 1999, p. 114 – tende a encarar o sentimento da liberdade da vontade como uma espécie de ilusão selecionada por força de seu maior “valor de sobrevivência” em relação ao realismo determinista. Sim, parece que, do ponto de vista da natureza, o sentimento do livre-arbítrio foi uma ilusão necessária.)

Livre-arbítrio como fato dedutível do remorso

Quase que imperceptivelmente, esse argumento do livre-arbítrio como sentimento ou concepção subjetiva transmuda-se no argumento de que o livre-arbítrio tem de existir porque, do contrário, não se poderia compreender o remorso, o arrependimento, o rebate de consciência e quejandos. Ou seja, se o ser humano sente tais sentimentos de autocensura por uma falta cometida é porque, ao tempo em que decidiu praticá-la, era (ou sente que era) absolutamente livre para decidir no sentido inverso, isto é, para evitá-la. Portanto, a autocensura seria um indicativo de que se poderia ter escolhido – absoluta, indeterminada e indiferentemente – agir de modo outro que não o conducente à conduta reprovável.

No ponto em questão, a principal refutação de Kelsen (2006, p. 106-107) é esta: as pessoas sentem remorso, arrependimento ou rebate de consciência mesmo quando agiram conscientes de que não poderiam ter agido de outra maneira. Mesmo o determinista mais convicto não pode se livrar das autorrecriminações. O que, empiricamente, só pode significar o seguinte: que culpa (lato sensu) ou inocência não é uma questão de livre-arbítrio ou de relação entre uma vontade absolutamente livre e a consciência quando da conduta, mas, simplesmente, uma questão de relação entre a vontade empírica e a consciência empírica quando da conduta (KELSEN, 2006, p. 137). De fato, a culpa (em sentido amplo) é a consciência que acompanha o ato volitivo-comportamental tido como errado (os modos e graus vários com que pode se dar esse acompanhar da consciência determinará as modalidades várias de culpa) e a inocência é a consciência que acompanha o ato volitivo-comportamental tido como certo. Donde, aliás, os sentimentos de culpa e inocência serem mais pronunciados no animal-humano, dado o nível de todo distinto de sua consciência.

 Livre-arbítrio como o poder de atuar conforme a vontade

Ainda, Kelsen tem claro para si a diferença entre o poder de agir como se quer e o poder de escolher o que se quer. O livre-arbítrio (ou algo parecido com ele) de fato existiria caso o ser humano pudesse escolher de forma absolutamente livre o próprio querer, ou seja, se o ser humano pudesse escolher, indiferentemente, a sua própria vontade. Contudo, a vontade não se escolhe, ou, de todo modo, não se escolhe de forma absolutamente livre, pois, ao menos nos quadros da experiência possível, ela não é só a causa de efeitos, mas, também e primeiramente, o efeito de causas. Só o que é dado ao ser humano é a liberdade de agir como quer, isto é, o poder de dar vazão à sua vontade, e mesmo assim sob a condição óbvia da ausência de obstáculos (como limitação física, pobreza, dependência, alienação, opressão política etc.).

Livre-arbítrio como única faculdade capaz de explicar que somente os seres humanos são eticamente responsáveis

Diz-se também que a faculdade do livre-arbítrio precisa existir porque só uma tal faculdade estaria em grau de explicar o fato de não tomarmos como responsáveis as coisas inanimadas e os animais não-humanos, mas tão-somente os seres humanos. No entanto, como o pensador austríaco não tem dificuldade de contrapor, só o ser humano é responsável porque as normas éticas só se referem à conduta humana, ou, mais bem posto, só se referem a algo cuja representação pode funcionar como causa unicamente da conduta humana (KELSEN, 2006, p. 107-108).

Grosso modo, sabemos que as coisas inanimadas produzem e sofrem ação causal e os animais não-humanos causam efeitos e sofrem influxos causais. Todavia, a representação normativa – sobretudo a representação da sanção/consequência imputada – só pode atuar como causa em meio à espécie humana. Mesmo outrora, quando coisas e animais irracionais eram “julgados”, havia certa intenção de que tal “julgamento” também repercutisse indiretamente, à guisa de exemplo, sobre a conduta humana (KELSEN, 1943, p. 320-321).

Livre-arbítrio como ausência de obstáculos à tomada de decisão

Avançando, mais um argumento a favor do livre-arbitrismo é aquele que, consoante a observação de Kelsen, aponta o livre-arbítrio como sinônimo de possibilidade de decidir livre de obstáculos. Tanto que, quando essa possibilidade não é atendida, comprometendo-se, assim, a decisão de vontade livre, os ordenamentos jurídicos modernos afastam a imputabilidade/responsabilidade. Tal é o caso, por exemplo, da criança e do doente mental, ou do adulto de mente sã submetido a uma “coação irresistível”, haja vista que, os dois primeiros, por causa de sua constituição psíquica aquém da constituição psíquica tida como normal, e o terceiro, por causa de uma pressão irresistível, acham-se impedidos de exercerem satisfatoriamente seu pretenso livre-arbítrio (KELSEN, 2006, p. 108).

Porém, para o jusfilósofo de Viena, o argumento em apreço também não se colhe. Em parte porque a criança e o doente mental não são inimputáveis devido ao fato de sua condição psíquica limitada comprometer o exercício de seu pretenso livre-arbítrio, mas sim por tal limitação psíquica comprometer a possibilidade de serem conduzidos “[…] com eficácia bastante […] à conduta prescrita através da representação de normas jurídicas […]” (KELSEN, 2006, p. 108); e em parte porque, no plano da experiência possível, toda e qualquer conduta se dá sob a “coação irresistível” da causalidade, os casos de “coação irresistível” mais não sendo do que casos de “coação irresistível” extraordinária, nos quais a irresistibilidade da coação extraordinária, exatamente por ser extraordinária, faz-se mais poderosa que a irresistibilidade da coação ordinária, i.e., pressuposta como eficaz sobre o “tipo médio de ser humano” atuante num “tipo médio de circunstâncias” (KELSEN, 2006, p. 108-109).

Em suma, os fatores que comumente elidem (inimputabilidade) ou mitigam (semiputabilidade) a imputabilidade/responsabilidade não são os que obstaculizam o exercício do livre-arbítrio, “a decisão de vontade livre”, mas, na verdade, os que obstaculizam no todo (inimputabilidade) ou parcialmente (semiputabilidade) a eficácia contramotivacional (sociopsicológica) de praxe da representação da sanção imputada.

Livre-arbítrio como imprevisibilidade

Continuando, que o livre-arbítrio existe porque não somos capazes de prever o comportamento humano, o próprio exercício de premeditação já interferindo na determinação da conduta futura – conforme aduz, por exemplo, Max Planck, certamente sob a impressão do chamado “efeito do observador” da mecânica quântica –, é outro argumento pró livre-arbítrio enfrentado por Kelsen (2001, p. 339-344). Aliás, como frequentemente acresce quem assim argumenta, depois de toda a incerteza e previsibilidade meramente probabilístico-estatística demonstradas pela física quântica, não há mais falar, de uma vez por todas, em determinismo causal, a hipótese do indeterminismo livre-arbitrista soando mais plausível que a do determinismo volitivo.

Contudo, esse tipo de argumento é fruto de uma série de mal-entendidos.

Primeiro porque imprevisibilidade não equivale à indeterminismo, mas à conhecimento determinável, isto é, à ignorância ou desconhecimento de todas as variáveis que concorrem para a determinação do fenômeno sob investigação.

Segundo porque, a previsibilidade, para Kelsen, não é o fator crucial no processo de constituição do conhecimento. No caso do agir humano, por exemplo, somente volvendo sobre as condutas já realizadas é que se faz possível deslindar os motivos que, provavelmente, acabaram por determiná-las. E se daí é possível aferir algum padrão minimamente satisfatório de conduta e projetá-lo no futuro já é menos uma questão de conhecimento científico-causal como tal do que de avanço deste (KELSEN, 2001, p. 330) e de querer utilizá-lo para uma tal finalidade prática preditiva.

Terceiro porque o probabilismo, a julgar pela reflexão kelseniana, está mais, bem mais, para uma atualização, em chave empírico-positivista, do princípio da causalidade, do que para o seu descarte.

E quarto porque, a essa altura, mais não é preciso dizer para se dar conta de que, o ônus da prova, na discussão livre-arbítrio vs determinismo, é do livre-arbitrista, pois, todo e qualquer fenômeno – o agir humano incluso – é, ao menos de um prisma probabilístico, causalmente determinado. A causalidade de alguns fenômenos pode ser mais fácil de se detectar (vide os fenômenos regulados pela causalidade mecânica) do que a de outros (vide os fenômenos humanos regulados pela lei da motivação abstrata). Seja como for, probabilisticamente falando, qualquer fenômeno está sob a égide do determinismo causal.

Livre-arbítrio como antídoto à “desculpologia determinista”

Mas se, provavelmente, o livre-arbítrio não existe; se, provavelmente, só há determinismo(s); e se, como sói dizer-se, “tudo compreender é tudo perdoar”, o determinismo, no âmbito da vida humana, não descambaria em desculpologia? Não, assegura-nos Kelsen, seja porque a responsabilização ética, embora distinta da causalidade, é compatível com esta e a pressupõe mesmo, seja porque é perfeitamente possível compreender, perdoar e não renunciar às consequências imputadas (KELSEN, 2006, p. 109), sobretudo quando se entende que estas não têm ou precisam ter a vingança por função ou finalidade intrínseca.

Livre-arbítrio como justiça retributivista

Mas então como fica, no final das contas, a questão da retribuição? Se não há livre-arbítrio, como viabilizar a imputação retributivista? Kelsen ensina-nos que, desde que se compreenda que a responsabilização efetivamente é possível por uma razão outra que não o livre-arbítrio, cai por terra o modelo retributivista de responsabilização, ao mesmo tempo em que se abre a possibilidade de se compreender a técnica da responsabilização à luz de outros modelos, a exemplo do preventivo-prospectivista (KELSEN, 1995, p. 276).

Aliás, mutatis mutandis, isso é o que já ensinavam há mais de dois mil e trezentos anos os sofistas gregos, os primeiros, consoante o levantamento histórico de Kelsen (1995, p. 276), a emanciparem a responsabilidade/imputabilidade da mentalidade retributivista.


Referências

KELSEN, Hans. Society and nature: A sociological inquiry. Chicago: The University of Chicago Press, 1943.

KELSEN, Hans. A ilusão da justiça. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

KELSEN, Hans. Causalidade e imputação. In: O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Trad. Luís Carlos Borges. 2 ed. São Paulo, 2001, p. 323-348.

KELSEN, Hans; CAMPAGNOLO, Umberto (Org. Mario G. Losano). Direito internacional e Estado soberano. Trad. Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KELSEN, Hans. A alma e o direito. In: MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; SANTOS NETO, Arnaldo Bastos (Orgs.). Contra o Absoluto: Perspectivas críticas, políticas e filosóficas da obra de Hans Kelsen. Curitiba: Juruá, 2011, p. 55-72.

WILSON, Edward Osborne. A unidade do conhecimento: Consiliência. Trad. Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Campus, 1999. 

Waldir Severiano de Medeiros Júnior é pós-doutorando em Direito e Justiça (FDUFMG). Mestre e Doutor em Direito e Justiça (FDUFMG). Professor colaborador de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG. Consultor Jurídico (OAB-MG 216.370). Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política e Administração Pública.

Este artigo contém fragmentos de um artigo científico recentemente publicado pelo autor na revista argentina Pensiamento Penal sob o título “La teoría pura de la imputabilidad jurídica”. O acesso na íntegra pode ser feito neste link.
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