Poder-se-ia dizer que o direito à arte está entre os direitos-fins, isto é, aqueles direitos (e.g. à formação/paideia, atuação política, cultura, lazer, associações afetivas, realização pessoal) cuja fruição, a despeito de suas implicações, é um fim em si mesmo, por atualizar os traços mais nobres ou distintivos da potencialidade humana, mas que, para tanto, necessitam da efetivação prévia ou concomitante dos direitos-meios, isto é, daqueles direitos (e.g. à vida, alimentação, moradia, saúde, segurança, educação, trabalho) que funcionam como suas condições de possibilidade.
De fato, um dos principais caracteres do ser humano, e que o distingue sobre a face da Terra, é a faculdade estético-artística, embora, à toda evidência, para o seu desenvolvimento e afirmação universais seja imprescindível o concurso de um mínimo satisfatório de acesso aos direitos-meios fundamentais aos bens comuns da vida – desde que não se queira deixar a realização da faculdade em questão ao sabor dos privilégios, ou de um acaso favorável possível, mas muitíssimo improvável, ou de meia dúzia de gênios teimosos.
A bem da verdade, sabe-se que todo o direito, sim, todo o ordenamento jurídico, é (ou deve ser) senão um valor-meio à serviço de um valor-fim, a saber, a atualização do potencial da espécie humana na forma de afirmação (ou, se se quiser, emancipação) das maiores e melhores virtualidades das pessoas conformadoras da espécie (REALE, 2003, p. 157-198).
No entanto, do estrito ponto de vista das relações entre os próprios direitos, é possível vislumbrar quais se prestam mais como meios e quais como fins, sendo certo que, no que diz respeito à arte, o direito à sua fruição (lato sensu) dá-se como um dos mais excelsos entre os direitos-fins, assim como que os direitos à educação e ao trabalho digno se apresentam como dois dos principais direitos-meios à sua consecução.
Se não, vejamos.
Começando pelo direito à educação artística, verifica-se que, embora todos sejam naturalmente dotados, se bem que segundo graus vários, de faculdade estética, parece razoável supor que uma educação voltada ao cultivo, desenvolvimento e lapidação de tal faculdade pode fazer toda diferença na qualidade do seu exercício – e, de quebra, na qualidade do exercício das demais faculdades (DYSSANAYAKE, 1992; DUTTON, 2001).
Quando mais não seja por poder tornar as pessoas mais dispostas ao belo (lato sensu), por equipá-las de habilidades criativas, por proporcionar-lhes parâmetros para, na condição de estetas, apreciar e bem avaliar as obras de arte e/ou experiências estéticas, e por fazê-las mais críticas quanto às suas preferências e preconceitos.
Sendo mais específico, o artista precisa aprender, dentre outras coisas, as técnicas de execução de sua arte, os estilos e suas evoluções, as “escolas” e suas linguagens, pois, por menos racional (leia-se: por menos aprendível e ensinável) que seja o dom em si, este, para a sua comunicação, precisa objetivar-se mediante o domínio de alguma técnica e fazer-se identificável graças à adoção de algum estilo/linguagem (SCHOPENHAUER, 2005, p. 233-350; GOMBRICH, 2012).
Donde, a propósito, a importância da instituição escolar como um dos principais espaços, para não dizer o principal espaço, de estímulo, oportunização, identificação e valorização da pessoa artista, logo, de realização do direito à arte – sob esse aspecto entremeado ao direito à vocação, à afirmação da subjetividade ou à realização pessoal.
Assente que, quando a escola não é o locus privilegiado da realização do direito à arte, como tal asseguradora das condições para o florescimento livre e plural dos talentos artísticos, as opções restantes, tais como a conjuntura da Indústria Cultural, o capital econômico e/ou cultural da família, a Igreja e o programa televisivo, não são lá muito promissoras e tampouco democráticas, em que pese o apelo “popularesco” que eventualmente possam ter (como tende a acontecer nos casos das gincanas midiáticas) (ADORNO, 1996).
Aliás, o mesmo podendo ser dito, mutatis mutandis, sobre o papel da escola e da educação artística para a pessoa desprovida de significativo talento para as artes, mas dotada, como criatura humana que é, de senso ou capacidade para a recepção e o desfrute estéticos. Já que, como é razoável supor, educar-se artisticamente haverá de enriquecer sua humanidade, refinar sua sensibilidade, depurar suas preconcepções, aguçar sua inventividade, ampliar seu cabedal cultural e (talvez o mais relevante) propiciar-lhe competência numa forma de saber/conhecimento tão peculiar como o é a arte e a cognição estética em geral.
Por seu turno, no tocante à relação do direito ao trabalho com o direito à arte, seria possível destacar, para além da dimensão criativa e realizadora conatural ao trabalho – comumente pervertida, contudo, pelo Capital opressor, explorador, quando não expropriatório, e alienante (MARX, 2017; ADORNO; HORKHEIMER, 1985) –, o direito ao trabalho digno como mais um pré-requisito importante (na verdade, necessário) para o acesso satisfatório às competências e aos bens estético-artísticos.
Admitindo-se que, se, muito basicamente, trabalho digno deve ser o que a) limita-se o mais possível a uma jornada justa ao mesmo tempo que b) é retribuído da forma mais justa possível em termos de remuneração e direitos, e se, trocando em miúdos, isso significa, para os efeitos de implementação real do direito à arte, senão trabalho não comprometedor do ócio e de toda a energia da pessoa trabalhadora e propiciador de recursos suficientes para se poder acessar os bens artísticos e/ou se dedicar à arte (DE MASI, 2001), logo, pode-se dizer então que, sem trabalho digno, é, se não impossível, muito difícil viver a arte – a menos que se “escolha” ser uma espécie de franciscano da arte.
Ademais, tenha-se em mente que, como a arte é uma forma de saber (sui generis, mas uma forma de saber), a pessoa que, graças às condições de vida asseguradas pelo trabalho digno, vê-se liberada para com ela se envolver, em tese passa a poder ter contato com uma fonte de todo especial para tornar-se mais cônscia e crítica dos seus direitos, haja vista a perspectiva reflexiva sobre o mundo, a vida e o valor do trabalho que determinadas propostas ou obras de arte apresentam, em especial a partir da modernidade (LAFARGUE, 2003; VANEIGEM, 2016, p. 233 e ss.).
Isso, é claro, presumindo-se que, mais tempo, vitalidade e recursos não haverão de se traduzir simplesmente em “mais descanso”, e sim em “mais vida”, ou, se se quiser, em “trabalhos” (esforços, empenhos, atividades, engajamentos) distintos do trabalho convencional, vendido ao Capital (GORZ, 2007). (No sistema atual, o sujeito praticamente só sabe trabalhar. Fora do trabalho sente-se imprestável, inútil, entediado, boçalizado, não sabendo o que fazer de si e do tempo livre, quando o tem.)
Em outras palavras, o que se presume é que o trabalho digno é aquele em grau de proporcionar uma vida não esgotada em sobrevivência, ou seja, uma vida em que a pessoa consiga levar a efeito as demais atividades com a mesma “gravidade” e vitalidade empregadas no trabalho ordinário (RUSSEL, 2002), enfim, uma vida em que também há tempo, disposição e recursos para se socializar, se informar, participar do dia a dia da comunidade, amar, cuidar de si e/ou dos seus e até fruir e/ou criar arte, ou, schopenhauerianamente falando, contemplar, a despeito da capacidade contemplativa de cada qual.
Afinal, como é que uma pessoa que trabalha de manhã à noite em troca de um salário de fome ainda teria condições para, quando chegasse em casa, aplicar-se com afinco numa obra de arte ou imergir profundamente numa experiência estética, e ainda por cima depois dos afazeres domésticos e dos cuidados para consigo próprio e/ou para com os seus familiares?! Sequer as tarefas domésticas ela conseguirá fazer com dignidade.
Dessarte, mais não seria preciso dizer para se dar conta de que um direito à arte que não fosse meramente retórico, mas efetivo, só seria concebível, por tudo o que pressupõe, à sombra de um Estado Democrático de Direito profundo ou de alta intensidade, ou, simplesmente, de uma democracia real, como tal fundada em educracia e trabalhocracia, e protagonizada pelo cidadão enquanto pessoa municiada do mínimo satisfatório das prerrogativas necessárias (como educação, trabalho digno, ócio, disposição e recursos) à afirmação emancipatória de suas potencialidades, dentre elas, as estético-artísticas.
De modo que, não obstante as eventuais discordâncias nos “detalhes” – e.g. distribuição de uma renda básica cidadã (SILVA, 2015) como alternativa ao trabalho digno, ante o fato de este, ao contrário das previsões, haver se tornado um ideal cada vez mais distante –, não parece haver divergências significativas quanto à ideia geral de que o direito à arte, enquanto tal, existe e é justo, que ele é crucial para a afirmação plena do humano e que sua efetivação depende de políticas públicas típicas de um Estado Democrático de Direito.
Com efeito, entre nós, para a comprovação da existência do direito à arte e dos seus direitos-suportes, como os direitos educacionais e trabalhistas, bastaria lembrar, por exemplo, o art. 215 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o qual prescreve que “[o] Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”, assim como o rol dos direitos sociolaborais fundamentais elencados nos incisos do seu art. 7º.
Outrossim, poder-se-ia lembrar o § 2º do art. 26 da Lei 9.394/96 (LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação), segundo o qual “[o] ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica”, de forma a promover o desenvolvimento cultural do alunado, bem como o inc. II do seu art. 32, que garante que a formação do cidadão passe pela “[…] compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade”.
Para não falar do art. 4º da Lei 8.069/90 (ECA: Estatuto da Criança e do Adolescente), que versa, conquanto de forma implícita, sobre o direito à arte ao dispor que:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Ou do art. 58 do diploma legal supra, que diz, agora expressamente, que:
No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura.
Portanto, eis aí, em síntese apertada, o que é direito à arte; a sua previsão, inclusive constitucional, no sistema jurídico brasileiro; e a demonstração da conexão de sua sorte à sorte do Estado Democrático de Direito.
Referências
ADORNO, Theodor Walter; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: 1988.
BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional: Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Brasília: MEC, 1996.
BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente: Lei federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 2002.
DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Editora Sextante, 2001.
DUTTON, Danis. Aesthetic universals. In: Beris Nigel Gaut & Domenic Lopes (Eds.). The Routledge companion to aesthetics. Nova York: Routledge, 2001, p. 203-214.
DYSSANAYAKE, Ellen. Homo aestheticus: Where art comes from and why. Nova York: Free Press, 1992.
GOMBRICH, Ernest Hans. A história da arte. 16 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2012.
GORZ, André. Metamorfoses do trabalho: Crítica da razão econômica. Trad. Ana Montoia. 2 ed. São Paulo: Annablume, 2007.
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MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Lisboa: Edições 70, 2017.
REALE, Miguel. Teoria da justiça. In: Teoria tridimensional do direito/Teoria da justiça/Fontes e modelos do direito. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, p. 157- 198.
RUSSEL, Bertrand. O elogio ao ócio. Trad. Pedro Jorgensen Júnior. 3 ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.
SCHOPENHAUER, Arthur. Do mundo como representação: Segunda consideração: A representação independente do princípio de razão: A Idéia platônica: O objeto da arte. In: O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 233-350.
SILVA, Josué Pereira da. Por que renda básica? In: Caderno CRH. Salvador, Annablume, v. 28, n. 74, maio/ago., 2015, p. 425-437.
VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Veneta, 2016.
Waldir Severiano de Medeiros Júnior é pós-doutorando em Direito e Justiça (FDUFMG). Mestre e Doutor em Direito e Justiça (FDUFMG). Professor de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG. Consultor Jurídico (OAB-MG 216.370). Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política e Administração Pública.