Políticas

Atualizado em 11 de outubro de 2024 às 08:29

A imagem é uma arte criada com um fundo escuro com as palavras "Montra por Eloésio Paulo" escritas no topo, em branco e azul. À esquerda, há a foto do colunista Eloésio Paulo, que é um homem de pele clara e cabelos grisalhos, usando uma camisa social bege, sorrindo para a câmera. Ao centro-direita, há a capa do livro "Política" de João Ubaldo Ribeiro em estilo tipográfico retrô. O título "João Ubaldo Ribeiro" está escrito em letras grandes e decorativas no topo, com "Política" logo abaixo em letras vermelhas destacadas. Abaixo disso, há um subtítulo em letras brancas dentro de um retângulo azul escuro: "Quem manda, por que manda, como manda."

“A realidade social parece fácil de perceber quando estamos falando abstratamente sobre ela, mas não quando estamos imersos nela.” Assim João Ubaldo Ribeiro justifica sua iniciativa de escrever um livro sobre “quem manda, por que manda, como manda” no Brasil. O romancista de Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro, que era bacharel em direito e lecionou ciência política na Universidade Federal da Bahia, achou importante reunir em livro, no apagar das luzes do regime militar, seus conhecimentos sobre o assunto, e assim nasceu essa obra hoje pouco lembrada, mas ainda útil, intitulada singelamente Política (1981).

Baiano nascido na ilha de Itaparica, João Ubaldo foi um dos escritores brasileiros de maior sucesso no final do século XX. Seu talento de ficcionista transparece, aqui, na limpidez do estilo e numa espécie de fábula que inventou para concretizar o raciocínio exposto: a imaginária sociedade pré-histórica “Ugh-Ugh”. Simplificação bem didática, ao contrário das que estão em voga ultimamente, as quais reduzem tudo ao nível dos rudimentos mais simplórios para facilitar a mistificação e a mentira. A “imaginação histórica”, explica o autor, permitiu fazer um resumo de “processos que se desenrolaram através de milênios”, cuja visão sintética torna mais compreensível “que os fatos históricos não acontecem ao acaso e que existem racionalidade e funcionalidade em muitas coisas nas quais não percebemos, de primeira, esses elementos”.

Apresentado como um “manual”, Política se empenha em deixar claro, por exemplo, que a eleição é apenas um momento daquele processo, que os políticos – por piores que sejam – são um reflexo bem fiel da sociedade que os coloca e mantém no poder e que a atividade partidária, ainda que odiosa para muitos (a ponto de, aparentemente, afastar do centro de decisão as pessoas realmente bem-intencionadas), “é a única via de ação possível”. Tudo isso ajuda a compreender um fato muito elementar: atrás de toda a conversa ideológica que as pessoas pensam ser a verdadeira motivação da disputa pelo poder, o que está em jogo, de fato, é apenas quais grupos de interesses ganharão o direito de apropriar-se do Estado para, usando os instrumentos que ele proporciona, conquistar vantagens econômicas e contabilizar lucros. Só as pessoas muito ingênuas pensam que a política é movida por ideias, e para saber disso basta ler um pequeno grande livro do século XVI – O príncipe, de Maquiavel, cujo estilo direto e conciso o ajudou a tornar-se o clássico que é.

Trocando em miúdos, para o atual momento de polarização da política brasileira: ainda que muitos imaginem estar votando contra pautas de “costumes”, na verdade participam da decisão sobre se determinados grupos e empresas (igrejas puramente empresariais incluídas) continuarão não pagando impostos ou uma parte da arrecadação tributária será usada para reduzir a histórica injustiça social do país. No outro campo, os promotores das ditas pautas se iludem colando em si mesmos a etiqueta de “progressistas”, quando o efeito prático de sua propaganda é assustar o conservadorismo religioso, que corre desesperado para os braços de profetas, capacíssimos da mais profissional dissimulação, especializados em vestir a fantasia de campeões da família e da moral. Que um lado e outro recorram à histeria ideológica ou disfarcem sua própria relação promíscua com grupos de pressão, é recurso que engana facilmente a maioria das pessoas – de resto, em geral afetadas por enorme preguiça mental e mais dispostas a acreditar na versão simplificada do embate entre o Bem e o Mal. E, assim como não existe ninguém apolítico (omitir-se é apoiar o lado que esteja mandando), a redução da luta pelo poder à “micropolítica” também desfoca a visão do que realmente está na disputa. Moralismo de sinal trocado também é moralismo.

Em Ugh-Ugh, a primeira forma assumida pelo poder foi a força física. Mas o conhecimento, num estádio mais complexo das sociedades, costuma ser mais eficaz que a pura brutalidade para dominar as pessoas, porque ele inclui a capacidade de convencer, que por sua vez depende do controle do conhecimento (ou da ignorância). Nas sociedades modernas, desde o começo do século XX, começou a ganhar vulto a indústria cultural, que tem o maior dos poderes para fabricar consciências submissas. Os mais antigos entre aqueles agentes nomeados por Louis Althusser “Aparelhos Ideológicos de Estado”, como a família, a escola e a religião, hoje estão subordinados completamente ao modo de funcionamento das chamadas “redes sociais”, desdobramento mais recente e complexo da indústria cultural. A exposição de Ubaldo, é claro, não pode alcançar esse novo desenvolvimento dos poderes simbólicos, e um dos defeitos de seu livro é a dificuldade para suplementá-lo – pois o autor morreu há dez anos.

Também alguns dados apresentados ficaram defasados, mas ainda assim Política ajuda a compreender como questões técnicas de um sistema eleitoral podem significar uma espécie de refração do poder. Veja-se o vergonhoso arcaísmo das eleições nos Estados Unidos, a sociedade tecnologicamente mais avançada (por enquanto), que permite a um candidato ter menos votos e mesmo assim ficar com a cadeira de presidente e a maleta dos botões atômicos. Em comparação, o sistema brasileiro é um exemplo de eficiência e confiabilidade, embora ocasionalmente surjam mentes em estado de rascunho (aliás, eleitas pelo mesmo sistema) para colocá-lo sob suspeita. Sobre essa questão, aliás, apreende-se mais lendo um conto de Machado de Assis, “A Sereníssima República”, do que qualquer manual teórico.

Outro senão de Política é sua noção de ideologia, um tanto confusa e incompleta. E o livro termina por um decálogo que, de tão óbvio, deveria ser chamado “regras elementares de bom senso”. Mas não custa relembrar a frase de Nelson Rodrigues: “Só os profetas enxergam o óbvio.”. Há quem pense não existirem pessoas constitucionalmente estúpidas, então seria inviável resumir todo o citado decálogo aconselhando, como Ubaldo: “Não seja burro!”. Ah, se as coisas fossem tão simples assim… Ocorre que, se realmente todo indivíduo fosse capaz de recusar-se à estupidez, seria desnecessário pensar num manual dessa espécie.


Título: Política
Autor: João Ubaldo Ribeiro
Gênero: Ficção
Ano da edição: 2010
ISBN: 978-85-7302-977-2
Selo: Objetiva


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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