Crônica da vaidade literária

Embora o mundo e a condição humana ofereçam sempre material novo e abundante para a ficção, fugir ao óbvio se tornou crescentemente difícil desde a liberação, no período que chamamos “modernista”, de todas as possibilidades de experimentação com a linguagem e as formas narrativas. É angustiante, para os escritores que se preocupem com a originalidade do que produzem, esbarrar nos parâmetros postos pela ficção de um James Joyce ou de um Kafka, insuperáveis ou até, ao menos até prova em contrário, inatingíveis. Por isso, obras como A arte de recusar um original (2007), do canadense Camilien Roy, soam como bem-vinda novidade.

Tudo bem, sua original ideia é bastante devedora das variações sobre um mesmo tema feitas por Raymond Queneau com Exercícios de estilo (1947). Mas, já diz o Eclesiastes, não há mesmo nada de novo sob o sol; a obra vale pelo arranjo inusitado ou pela aplicação de intenção quase igual a assunto diferente. Se o leitor for exigente demais, valerá ao menos como divertida e bem-intencionada advertência para os novatos na escrita literária.

Roy afivela, na introdução, a máscara do autor que teve originais recusados por várias editoras. A situação é sempre igual: ele enviou um romance (de conteúdo sentimental) e recebe cartas explicativas nos mais variados tons e estilos. Tal variedade é, além do humor, a principal matéria do livro, que acaba funcionando como valioso estudo a respeito de alguns dos principais problemas literários e editoriais. Os motivos por que os editores declinam da publicação da hipotética obra irão dos mais óbvios (falta de qualidade, inatualidade) até os mais nonsense, como a resposta “vietnamita”, de que a gente não entende patavina porque é escrita numa imitação daquela língua oriental.

Se para muitos autores a recusa de uma editora deve ser o maior dos dramas, Camilien Roy transformou-a em piada. Isso já terá, por si só, algum valor terapêutico para egos contrariados. Mas o tom humorístico disfarça uma capacidade invejável – ou será uma experiência pouco digna de inveja? – de imaginar explicações para um editor não publicar determinado livro. Várias delas terminam pelo conselho de que o escrevinhador desista da literatura; é o caso do “Agressivo”, um dos primeiros: “Desculpe-me a sinceridade, mas o ideal seria que o senhor procurasse outra atividade. Faça um favor a si mesmo: abandonar a escrita enquanto é tempo.” Por cruel que pareça, é o melhor conselho para a espécie de escritor mais abundante: os que não têm talento, são autocomplacentes demais ou simplesmente têm preguiça de retrabalhar seus textos. Ou, ainda pior, os que não gostam de ler, mas, por um estranho mistério, pensam poder criar literatura digna do nome pelo processo da geração espontânea.

Seguem-se a recusa de estilo conciso (“Lemos e não gostamos. Lamentamos mas foi recusado.”), a do editor desonesto – que lembra certos periódicos científicos e/ou editoras caça-níquel –, a do modesto, a do racista e dezenas de outras, cada qual formulada em linguagem condizente com o espírito de seu conteúdo ou a personalidade do signatário. Talvez a melhor de todas seja a do “Lendário”, de que vai aqui o trecho inicial:

No fim do verão de 1631, Horácio Musse, cujas inteligência e facilidade de aprendizado
eram admiradas por todos na aldeia, tomou uma decisão irreversível. Bem-dotado tanto
para as letras quanto para as cifras, ele poderia ter se tornado comerciante e enriquecido
como o pai, mas tomou outra decisão decepcionando profundamente o progenitor. Antes
de deixar a casa paterna, mal conseguindo conter a arrogância juvenil, disse ele: “Pai,
mãe, desde que nasci minha cabeça transborda de histórias. Agora me tornei um homem,
é chegada a hora de passar para o papel todas essas histórias que carrego dentro de mim.

No desfecho, a presunção do personagem é castigada por um velho sábio que faz as vezes do editor, explicando-lhe, paulocoelhescamente, que “As mais belas maçãs se encontram com frequência nos galhos mais altos da macieira” etc.

A qualidade especificamente literária do texto é o principal na recusa “durasiana”, que imita o estilo de Marguerite Duras, autora de O amante (1984), um dos maiores sucessos da moderna literatura de língua francesa. Existe o editor furioso, cuja revolta o faz sonhar com o emprego de lixeiro e que suspeita que “com o tipo de coisa que tenho lido nos últimos tempos, acho que já estou quase lá”. Outro, o “Pornógrafo”, dá conselhos como este: “no décimo terceiro capítulo, quando há a pequena festa de aniversário de Karine, por que não encerrá-la com uma boa suruba, envolvendo todos os convidados? Isso seria perfeito.” E não poderia faltar a feminista, que acusa o suposto autor de viver “preso a um passado ultrapassado e inadequado”, sendo, portanto, incapaz de “encontrar leitoras para um romance tão desrespeitoso em relação às mulheres”. Curiosamente, não há no livro o editor machista, que certamente seria uma interessante variação da estereotipagem ideológica estilizada nessa carta. Vai ver, a disposição do autor para o risco também tinha seus limites.

A arte de recusar um original merece, em seu conjunto, ser lido como irônica reflexão sobre as vaidades que são o estofo principal não só da vida literária, mas de quase toda atividade humana – e aqui tornamos ao Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.” É divertido percorrê-lo, mesmo para quem já sabe que a escrita de poesia ou de ficção continuará sendo uma aposta cujo sucesso depende poucas vezes do valor, especialmente num tempo em que mudou completamente o valor de quem decide o que seja valor.


Título: A arte de recusar um original
Autor: Camilien Roy
Tradução: Pedro Afonso Vasquez
Gênero: Didática | Guia de Escrita
Ano da edição: 2009
ISBN-10: 8532524001
ISBN-13: 978-8532524003
Selo: Rocco


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas

LEIA TAMBÉM