Bukowski, o “tóxico”

A imagem é uma arte criada com um fundo escuro com as palavras "Montra por Eloésio Paulo" escritas no topo, em branco e azul. À esquerda, há a foto do colunista Eloésio Paulo, que é um homem de pele clara e cabelos grisalhos, usando uma camisa social bege, sorrindo para a câmera. Ao centro-direita, há a capa do livro. O título está escrito em letras grandes e decorativas no topo.

Charles Bukowski, morto em 1994, foi inicialmente publicado no Brasil pela lendária Editora Brasiliense, de Caio Graco Prado, e tornou-se logo um dos escritores mais lidos por aqui. Sua atual editora, a gaúcha L&PM, esgota tiragem atrás de tiragem de uns vinte títulos dele publicados em sua coleção de bolso. Isso apesar de Bukowski ser um dos mais acabados exemplos do que, em certos círculos, virou voga chamar de “machismo tóxico”.

Cartas na rua (1971) foi o primeiro romance escrito por Bukowski, que também produziu coletâneas de contos e de poemas. Os contos, especialmente aqueles reunidos em Crônica de um amor louco (1983, edição brasileira), são a parte mais significativa de sua obra; mesmo quando escreve poemas, ele continua sendo, quase sempre, um contista ou um cronista autobiográfico. Isso porque, na escrita visceral desse homem que parece ter passado 80% da vida entre bebedeiras, jornadas sexuais e corridas de cavalo, a substância principal é uma espécie de memória imaginada.

Nessa obra de estreia, já aparece o alter ego que irá figurar em várias outras, Henri Chinaski. Os episódios que ele narra quase se restringem ao vaivém entre o emprego na empresa de correios do governo estadunidense e as temporadas de ócio, remunerado ou não, consumidas embriagando-se e fazendo sexo, preferencialmente com mulheres problemáticas – cujas descrições não são nada complacentes: “Ela voltou ao quarto e pôs o melhor vestido, saltos altos, tentou se maquiar. Mas havia uma tristeza horrível na tentativa dela.” Tal estofo ficcional, que à primeira vista seria pobre, é compensado pela escrita fluente; o estilo prende o leitor pela espontaneidade, faz o tempo correr rápido. A irreverência do narrador é outro atrativo importante, e nela não será nunca de somenos o vocabulário chulo. Bukowski abusa dos palavrões, e alguns de seus contos têm temática e linguagem capazes de horrorizar no último grau as mentes mais formatadinhas.

Para pretendentes a escritores, a fluência talvez seja seu maior encanto. Ela faz parecer que seria fácil escrever como Bukowski, e por isso surgiram entre nós vários imitadores dele. Em Cartas na rua, até um elemento básico da linguagem literária ainda está pouco desenvolvido: a figuração não vai muito além de hipérboles, umas poucas metáforas e comparações óbvias do tipo “sua língua entrava e saía de minha boca como uma pequena cobra ensandecida”. Singeleza compensada pela capacidade do autor, em certas passagens, de elevar a pequenez cotidiana de um americano comum quase ao nível dos desafios épicos. As tentativas de Chinaski de cumprir seu modesto trabalho são atrapalhadas por tantas dificuldades quantos são os monstros da mitologia grega.

Ao longo de algumas desistências na tentativa de viver como trabalhador comum, Chinaski bebe baldes de cerveja e troca de namorada várias vezes. Com uma delas, acaba por gerar a menina que é a principal contraprova do enchimento autobiográfico do romance: Marina Louise, seu nome, é como se chama a única herdeira deixada por Bukowski. A propósito, a principal biografia do escritor (Charles Bukowski – Vida e loucuras de um velho safado) mostra que a imagem de beberrão e mulherengo foi um tanto mitificada por suas fantasias tornadas ficção: no fundo, ele era uma pessoa sensível e queria, como qualquer outra, encontrar o amor definitivo. Talvez essa verdade transpareça através da obra bukowskiana, e esse homem que realmente existiu, na verdade muito pouco “tóxico”, seja o que de fato seduz tantos leitores.

As incursões de Chinaski nas corridas de cavalos estão resumidas na frase “Enquanto o dinheiro durasse, você durava.” É o ganho em apostas num hipódromo que permite ao protagonista, em contraste com o mísero salário de carteiro, intervalos de uma vida ostentatória, de dissipações, atraindo-lhe até mesmo uma amante de alta classe que, no fim das contas, pretendia matá-lo para roubar umas poucas centenas de dólares.

Ficção de uma vida marcada pelo improviso, tipo de enredo comum nas produções culturais que mitificam o american way of life, a de Bukowski faz dele um anti-Thoreau. Como o autor de Walden ou A vida nos bosques (1854), inventor da expressão “desobediência civil”, que influenciou líderes como Gandhi e Luther King, o narrador de Cartas na rua luta para despojar-se de tudo aquilo que escraviza os indivíduos ao capitalismo; mas, ao contrário de Thoureau, continua preso ao dinheiro como um passarinho ao visgo. Sua liberdade nada tem de espiritual, consiste na ilusão de que os vícios do corpo e da alma podem ser compatíveis com um espírito desembaraçado das obrigações do cotidiano. Bukowski tentou ser uma espécie de zen-budista bêbado, e nesse sentido talvez tenha certo parentesco com certos coaches literários que pregam, entre outras coisas, a surubização do culto mariano. Também por isso, foi associado aos escritores da geração beat – que lhe eram anteriores –, como Jack Kerouac. Era mais talentoso que todos eles, embora talvez menos profundo que alguns.

Além do prazer da leitura e de certa apreensão refratada do que é a verdadeira sociedade norte-americana (mérito de toda a literatura beat), o que o leitor pode esperar de Cartas na rua? Sem dúvida, algumas lições muito boas – ao menos para um leigo – a respeito de apostas em cavalos:

O terceiro páreo era de 1.200 metros. Agora o favorito era o cavalo de arrancada, o que
saía na frente. Ele tinha perdido a última corrida por um nariz de diferença em 1.500
metros, segurando a liderança durante toda a reta e perdendo só no último instante.
O cavalo 8 era o mais próximo. Tinha terminado em terceiro lugar, um corpo e meio
atrás do favorito, fechando dois corpos na reta. A multidão calculava que se o 8 não
tinha alcançado o favorito em 1.400 metros como então poderia pegá-lo numa pista
menor? A multidão sempre voltava quebrada para casa. O cavalo que ganhara a
corrida de 1.400 metros não estava na corrida de hoje.

O desfecho do romance segue-se ao pedido de demissão do protagonista, depois de onze anos (era sua segunda temporada nos Correios) equilibrando-se entre a propensão à marginalidade e as tentativas de enquadrar-se no mundo do trabalho:

Onze anos como um tiro na cabeça. Eu tinha visto o emprego devorar os homens. Eles
pareciam derreter. Lá estava Jimmy Potts do Posto Dorsey. Da primeira vez que cheguei
lá, Jimmy era um cara musculoso em sua camiseta branca. Agora estava liquidado.
Colocava seu banco o mais próximo do chão possível, e se agarrava para não cair. Vivia
de tal maneira cansado que já nem cortava o cabelo e usava as mesmas calças há três anos.
Trocava as camisas duas vezes por semana e caminhava bem devagar. Tinham-no
assassinado. Estava com 55 anos. Faltavam sete para ele se aposentar.
– Nunca vou conseguir – ele me disse.

Depois de um período de “descompressão”, no qual chega a flertar com o suicídio, Chinaski encontra a salvação na literatura: resolve escrever um romance. Esse romance se chama Cartas na rua.


Título: Cartas na rua
Autor: Charles Bukowski
Tradução: Pedro Gonzaga
Gênero: Romance | Ficção | Ficção estrangeira
Ano da edição: 2021
ISBN: 978.65.566.6146-9
Selo: L&PM Editores


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas

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