Bem longe do clichê

Atualizado em 11 de novembro de 2024 às 09:15

No final, é um romance sobre o amor, a morte, o destino. O que o faz diferente das narrativas estereotipadas sobre os mesmos temas é o estilo, é a técnica narrativa. O amante (1984), livro de maior sucesso da francesa Marguerite Duras, parece ter sido escrito com a intenção de mostrar que os sentimentos-clichê não existem no mundo real, apenas na mente das pessoas superficiais, que os criam como ficção conveniente para simplificar o que é complexo.

Por isso que seu enredo deixa o leitor meio desorientado. Os blocos narrativos que o compõem, breves ou brevíssimos, sofrem de tremenda mobilidade: variam o foco narrativo, o tom, o registro da linguagem. Basta correr os olhos pelos trechos a seguir, que chegam a parecer de dois escritores diferentes.

A viagem durava vinte e quatro dias. Os navios de passageiros eram verdadeiras cidades,
com ruas, bares, cafés, bibliotecas, salões, reencontros, amantes, casamentos, mortes.

Estavam enganados. O erro que haviam cometido em segundos atingiu todo o universo.
O escândalo alcançava a escala divina. Meu irmãozinho era imortal e ninguém havia
percebido isso. A imortalidade tinha sido absorvida pelo corpo daquele irmão enquanto
ele vivia (…) Todos tinham errado completamente. O erro percorreu todo o universo,
o escândalo.

Mas a autora dominava o sortilégio de acoplar os tempos e os lugares narrativos de modo a contar sua história sem nunca deixar a gente perceber para onde ela iria. Apesar disso, não existem grandes ou sensacionais fatos a contar; o essencial consiste num caso de amor proibido. Se se colocam os elementos na ordem óbvia, a história se reduz a isto: uma mocinha de quinze anos resolve prostituir-se devido às dificuldades materiais da família, encontra um cliente riquíssimo, os dois se apaixonam e vivem um intenso caso de amor durante algum tempo.

A proibição ao amor vem do fato de a protagonista ser branca e seu amante ser chinês. Ele devia casar-se dentro da tradição de sua família e cultura, jamais com uma pequena prostituta. Mas as coisas nunca são assim, elementares: o mundo interior da narradora é fantasticamente complicado, lembra as paradoxais personagens femininas de Clarice Lispector. Em torno da consciência da mocinha e de suas memórias é que tudo gira. Ela vive com a mãe e dois irmãos, durante os anos 1930, numa cidade portuária do Vietnã ocupado pela França. Alguns dados do enredo são propositadamente borrados, como as estranhas relações entre mãe e filha. O próprio caso de amor é cheio de lacunas; fica o espaço necessário às ambiguidades e contradições do sentimento, embora seja claro que o amante do título – o rapaz chinês – é uma personalidade fraca, ao contrário da protagonista. Eles não têm, aliás, seus nomes mencionados.

“Muito cedo na minha vida ficou tarde demais”, ela diz logo na primeira página, e todo o enredo está a confirmá-lo. Parece que os fatos são sempre irremediáveis no destino dessa narradora (a maior parte do tempo, ela ocupa tal posição), desde sua vocação para submeter-se quase mecanicamente a um homem desconhecido e bem mais velho até a decisão precoce de tornar-se, um dia, escritora. A propósito, Marguerite Duras, como sua personagem, nasceu em Saigon, que depois da Guerra do Vietnã passou a chamar-se Ho Chi Minh. Também foi uma garota de nacionalidade francesa vivendo na Indochina colonizada.

Felizmente, para a sorte do livro, a autora não podia ser acusada de pregar o abuso sexual de menores. Sua protagonista, por sinal, não deixa de lembrar a precocemente sexualizada Dolores de Lolita (1955), obra mais conhecida de Vladimir Nabokov. São dois grandes romances a mostrar que a estereotipagem não tem lugar na literatura de qualidade; que a licença para representar a condição humana em tudo que ela tenha de “escuridão e rutilância” – como lá diz o poema de Augusto dos Anjos – é o que faz alguns escritores se tornarem imortais, ao passo que o nome de muitos outros não sobrevive aos fatores transitórios que fazem a voga de seus escritos.

O amante é bem fininho, ao contrário de Lolita, mas também tem em comum com ele os vislumbres de alta poesia e ainda faz, nesta passagem, profunda reflexão (ou, até mesmo, uma profecia) sobre o significado do ato de escrever:

Hoje, muitas vezes, escrever pode parecer não significar nada. Por vezes sei disto: a partir
do momento em que não for, sempre, todas as coisas confundidas numa única por essência
inqualificável, escrever é nada mais que publicidade. (…) a palavra escrita não saberá
mais onde se esconder, se fazer, ser lida, que sua inconveniência fundamental não será
mais respeitada, mas nem penso mais nisso.

Se Duras falava pela voz de sua personagem, o que é bem plausível, ela não deixou, posteriormente, de refletir, apesar de um pouco caoticamente, sobre o papel do escritor, tanto que produziu, pouco antes de morrer, um livro intitulado Escrever (1993). Quanto ao enredo de O amante, percorrê-lo é uma aventura solitária, e dizer mais sobre ele seria roubar o leitor o prazer que dela pode advir. É obra-prima das mais concentradas; mesmo assim, transmite uma impressão abrangente da época e do local onde a história se passa. O mais importante, no entanto, é o singular mundo interior da protagonista.


Título: O Amante
Autora: Marguerite Duras
Tradução: Aulyde Soares Rodrigues
Gênero: Romance | Literatura Francesa
Ano da edição: 1985
Selo: Editora Nova Fronteira


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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