A Proclamação da República e as lutas por direitos e cidadania

A imagem é uma ilustração histórica em tom sépia retratando a ovação popular ao marechal Deodoro da Fonseca e a Quintino Bocaiúva, na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, em decorrência da Proclamação da República. Várias pessoas estão reunidas nas sacadas e janelas, enquanto uma multidão densa ocupa toda a rua. No centro, dois cavaleiros passam entre a multidão, sendo o foco da atenção.
Proclamação da República. Ovação popular ao marechal Deodoro da Fonseca e a Quintino Bocaiúva, na Rua do Ouvidor. Ilustração publicada em 21 de dezembro de 1889. (Crédito: Occidente – Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro)

— Mas o que é que há? perguntou Aires.

— A república está proclamada.

— Já há governo?

(Machado de Assis, Esaú e Jacó)

Em 15 de novembro de 1889, o Rio de Janeiro, até então capital do Império do Brasil, foi palco de manifestações de oposição ao Ministério comandado pelo visconde de Ouro Preto. Participaram desses episódios algumas figuras de destaque no cenário político da época, principalmente militares, que exigiam melhor tratamento quanto a carreira e cuja insatisfação com o Império crescia. Os atos de contestação ao governo acabaram por derrubar o ministério e levaram à Proclamação da República. Deodoro da Fonseca, escolhido pelos opositores para liderar o movimento nas ruas, voltou para sua residência logo após a queda do ministério. José do Patrocínio, abolicionista, teria discursado no parlamento, proclamando o final de 67 anos de regime monárquico (ALONSO; NAPOLITANO, 2013).

Tornaram-se comuns, nas narrativas sobre os primeiros momentos do regime republicano, observações pouco elogiosas sobre os acontecimentos. Algumas delas, disparatadas pelos próprios republicanos. Como exemplo, Aristides Lobo,

o propagandista da República, manifestou seu desapontamento com a
maneira pela qual foi proclamado o novo regime. Segundo ele, o povo,
que pelo ideário republicano deveria ter sido protagonista dos
acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que
se passava, julgando ver talvez uma parada militar. (CARVALHO, 1987, p. 9)

A questão a ser pensada com maior reflexão, certamente diz respeito sobre qual era a ideia de “povo” que se passava nas cabeças dos republicanos naquele momento histórico. O movimento republicano não era algo homogêneo quanto ao seu conteúdo ideológico. Ao contrário, havia dissidências e diferentes proposições sobre como o novo regime seria conduzido. Influenciado fortemente pelo ideário do Positivismo francês, o regime republicano brasileiro, em seus primeiros passos, entendia que o governo deveria ser exercido pelos mais preparados e esclarecidos, enquanto o povo, apenas seguiria obedientemente as decisões emanadas dos melhores homens da sociedade. Essa era, em termos muito simplificados, a forma característica da tendência política que se tornou vencedora no regime republicano do Brasil.

Outras propostas, entretanto, também estiveram em jogo. Algumas delas, como as que eram defendidas por homens como Silva Jardim e Lopes Trovão, propunham ampliar a participação popular. Aliás, eram eles grandes agitadores e oradores no espaço público. Embora suas ideias não fossem exatamente claras sobre como deveria ser conduzido o novo regime, era evidente que entendiam a participação popular como fundamento da República. Silva Jardim, “queria a transformação feita revolucionariamente nas ruas com apoio e participação do povo”. (CARVALHO, 1987, p.46).

Não obstante as tendências radicais que agitavam os debates políticos da época, o modelo de governo republicano vencedor foi certamente de caráter conservador, militarista e pouco afeito à participação popular. Como ainda nos explica José Murilo de Carvalho, “a rigidez do sistema republicano, sua resistência em permitir a ampliação da cidadania, mesmo dentro da lógica liberal, fez com que o encanto inicial com a República rapidamente se esvaísse e desse origem à decepção e ao desânimo” (Carvalho, 1987, p56).

Em vários momentos, tal decepção se transformou em luta aberta contra a República recém instaurada, desestabilizando a ordem política e social. Os anos iniciais do regime republicano no Brasil foram marcados por uma violência desmedida por parte dos diferentes governos. Tanto os mandatos sob o comando de militares como também os exercidos por presidentes civis, foram pródigos em massacrar os opositores do poder político estabelecido.

Vejamos, brevemente, apenas alguns exemplos que são bastante conhecidos na história e na historiografia do período. Proclamada a República no final de 1889, em 1893 explode a Revolta Federalista nos estados do sul do país. Em 1904, em plena capital da República, as ruas foram tomadas por violento conflito decorrente da obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. Os sertões da Bahia foram cenário de um massacre perpetrado pela ordem republicana, que após enfrentar forte resistência, acabou por dizimar os sertanejos de Canudos, episódio que foi narrado de maneira brilhante pela pena de Euclides da Cunha. Também no Rio de Janeiro, em 1910, aconteceu a revolta dos marinheiros, liderada por João Cândido, contra os abusos e violências aos quais eram submetidos nas embarcações da Marinha brasileira. Em 1917, em São Paulo, ocorre uma greve comandada por trabalhadores fabris com forte participação de anarquistas. Entre 1922 e 1924, estouram revoltas militares, comandadas por tenentes que reivindicavam mudanças profundas na sociedade. Nessas rebeliões, jovens oficiais foram mortos e a cidade de São Paulo foi bombardeada pelas forças do regime republicano (LOPES, 2024)

Esses foram apenas alguns dos muitos enfrentamentos pelos quais a República nascente foi testada em seus momentos iniciais. Na base de quase todos os conflitos listados acima, se assentava a disputa por direitos e cidadania, sendo que tais conceitos eram pensados de maneira bastante distinta pelos que exerciam o poder e por aqueles que exigiam o cumprimento das promessas que as lideranças republicanas sinalizaram quando ascenderam ao governo.

O fundamento dos ideais republicanos residia nas concepções de “modernidade”, sanitarismo e higienismo. Noções essas que estavam relacionadas também a uma perspectiva de branqueamento da população e racismo, percebidas em ações como as reformas urbanas em algumas cidades brasileiras, principalmente, o Rio de Janeiro, cujo modelo de urbanização e limpeza étnica assentou-se na expulsão da população negra, em grande parte egressa da escravidão e na “assepsia” das precárias habitações ocupadas por essa mesma população, feita com base na destruição de cortiços e prédios que abrigavam esse contingente na área central, empurrando-o para os morros e pântanos na periferia da cidade (LOWANDE, 2014, p.17)..

Ao contrário do que havia dito Aristides Lobo, o povo não assistiu a tudo “bestializado”. Revidou, das formas que eram possíveis, as violências sofridas em décadas de exclusão social. A República reservou aos pretos e pobres um lugar específico: o mercado de trabalho “livre”. Se, durante o regime escravista, a exclusão social era evidente, na República tornou-se mais sutil. A cor da pele deveria indicar o lugar a ser ocupado na mesa do banquete republicano, ou seja, por causa de sua origem, essa população ocuparia, como sempre havia feito, a função de serviçais conformados. Porém, não se os arguiu se aceitariam obedientes a subalternidade.  Na verdade, nem seria preciso indagar. Era evidente que não estavam dispostos a continuar na condição de cidadãos de segunda classe. Subverter a ordem tornou-se uma tarefa cotidiana para mulheres e homens que viviam na pele a famigerada modernidade republicana.

Em suas lutas diárias, a população preta e pobre buscou construir novas estratégias de sobrevivência dentro de uma sociedade excludente. À ideologia do trabalho regenerador e educativo do cidadão, contrapôs-se a malandragem, presente desde sempre numa população acostumada a viver de expedientes incertos, fossem considerados lícitos ou não pela ordem estabelecida. Nas brechas da rigidez do Estado policialesco, surge uma sociabilidade fluida, caracterizada pela convivência turbulenta das ruas das grandes cidades, pela inserção atrevida em espaços reservados à população branca e por culturas que remetiam a um passado não muito distante: o samba, “filho do Lundu”, a capoeira, os terreiros de Umbanda e Candomblé.

As ações tomadas pelas autoridades para impor à população a obrigatoriedade de  medidas de higiene e saúde eram quase sempre truculentas e visavam, na melhor das hipóteses, dar ares de uma civilidade de matriz europeia para as cidades mais populosas, não se preocupando, porém, com as péssimas condições sanitárias em que jazia a população desfavorecida, vivendo em condições insalubres de moradia pela falta de saneamento básico, sem assistência médica e exposta a doenças como tuberculose, gripe, cólera, entre outras que ceifavam muitas vidas. A mortalidade infantil alcançava índices vergonhosos tanto nas cidades grandes como nos pequenos municípios do interior do Brasil. (EUGÊNIO, 2021).

A quase ausência de assistência médica causava também muitas mortes de mulheres, tanto durante o período de gestação, como no momento do parto ou do pós-parto. Aliás, a representação republicana da mulher idealizada e difundida em revistas voltadas para o público feminino, estava bem distante da realidade da maior parte das mulheres, principalmente daquelas de condições sociais mais humildes. Sob o véu da moralidade, buscava-se exercer o controle sobre o corpo da mulher, impondo-se a elas condutas que incentivavam a maternidade, desde que legitimada por relacionamentos dentro dos padrões sociais aceitáveis, ou seja, o casamento e, antes desse, a virgindade. Condenando criminalmente o aborto, a sociedade republicana não se importava, no entanto, com as condições econômicas e de saúde em que viveriam as crianças nascidas a partir de abusos e violência cometidos contra mulheres, algumas delas ainda em idade púbere.

Esta situação agrava-se nos casos de relações ilegítimas, que correspondem
a um montante considerável na classe subalterna, em que o homem é levado
a não se sentir responsabilizado
por sua atuação, escapando mais facilmente
e deixando à mulher o ônus moral e financeiro da prole resultante.
(SOIHET, 1986, p. 192)

O desconhecimento do próprio corpo e a falta de orientação e educação sobre a sexualidade, considerara tabu em uma sociedade marcada pelo higienismo moralizador, completavam o quadro trágico vivido por muitas mulheres pobres lançadas sem piedade à execração pública quando, às vezes sem sequer saber, transgrediam às regras de moralidade e ao ideal de maternidade a elas atribuído pela sociedade dos anos iniciais da república (SOIHET, 1986, p.197).

Nesse sentido, a república proclamada em 1889, historicamente pode ser caracterizada como um regime político excludente, comandado por uma elite preocupada em mostrar sua inserção no moderno capitalismo industrial, comandando uma sociedade em plena transformação, cujos antagonismos e enfrentamentos foram profundos ao longo das décadas de 1910 e 1920, principalmente, mas dos quais as marcas permaneceram como desafios às gerações e governos posteriores.

O que haveria de se comemorar nos 135 anos da Proclamação da República a não ser a luta de tantas pessoas por seus legítimos direitos de cidadãos brasileiros? Afinal são esses personagens que uma versão da história oficial busca, por vezes, apagar da memória. Mesmo assim, as conquistas sociais não foram fortuitas ao longo do período republicano. São frutos, certamente, da resistência contra a desigualdade e do enfrentamento contra a ordem autoritária. A república brasileira ainda está em construção. Se já percebemos, de algum tempo, a consolidação de instituições importantes na defesa da democracia, sabemos que ainda há muito a ser feito. As experiências ditatoriais do período republicano (Estado Novo, 1937-1945; Ditadura Militar, 1964-1985) foram lições históricas suficientes para que, parafraseando Marx, não se permita surgirem novas tragédias, menos ainda, repeti-las como farsa.


Referências

ALONSO, Angela. Napolitano, Marcos. Entrevista. Especial Proclamação da República, 17/12/2013. UNIVESP TV. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ybboE9VmZoE&t=610s Acesso em 11/11/2024.

ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

EUGÊNIO, Alisson. A história social dos cemitérios em Alfenas entre 1902 e 1921. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais – RBHCS. Vol. 13 Nº 26, Janeiro- Junho de 2021.

LOPES, José Reinaldo. Maior ataque a SP matou 500, destruiu famílias e fez 1/3 da população fugir há 100 anos. Folha de São Paulo, 3 de julho de 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/07/maior-ataque-a-sp-matou-500-destruiu-familias-e-fez-13-da-populacao-fugir-ha-100-anos.shtml. Acesso em 11/11/2024.

LOWANDE, Walter. O curso de Farmácia: a EFOA, o ensino farmacêutico e as transformações socioculturais no Brasil entre 1914 e 2014. In: EUGÊNIO, Alisson (org.). Universidade Federal de Alfenas: história de uma instituição centenária e de sua primeira década de transformação em universidade (2005-2015). Alfenas: UNIFAL-MG, 2015.

MARX, Marx, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução e notas de Nélio Schneider ; prólogo Herbert Marcuse.São Paulo, Boitempo, 2011.

SOIHET, Rachel. É proibido não ser mãe.: opressão e moralidade da mulher pobre. In: VAINFAS, Ronaldo (organizador). História e sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1986.

Mário Danieli Neto é professor do curso de História do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) da UNIFAL-MG. Licenciado em História pela PUC de Campinas, o docente é especializado em Organização de Arquivos pelo IEB-USP, mestre em História Econômica pela Unicamp e doutor em Economia Aplicada (área de concentração História Econômica) também pela Unicamp. Áreas de atuação: História Geral e do Brasil; Historiografia, História Econômica. Temas de interesse: Escravidão; Escravidão Urbana e Escravidão Industrial.

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