Vistos em perspectiva histórica, os contos de Dentro da noite (1910) são uma espécie de antídoto antimodernista. João do Rio era um ótimo escritor, mas mobilizava em sua ficção técnicas narrativas ainda totalmente presas à estética do século XIX. É por isso que não tem sentido compará-lo a Machado de Assis, que, além de ter produzido muito mais no gênero, explorou cada possibilidade da arte de contar histórias curtas. Quanto às inovações técnicas de um Alcântara Machado ou de um Mário de Andrade, João do Rio nem passou perto de ensaiá-las.
O que não é um problema. Dentro da noite tem, entre os 18 contos que o compõem, alguns que merecem figurar em qualquer antologia. De saída, “O bebê de tarlatana rosa” não tem igual pela surpresa horrenda de seu clímax, o narrador descobrindo que estivera, no Carnaval, envolvido em jogos eróticos com uma mulher sem nariz – leia-se, na época “leprosa” e, hoje, hanseniana.
João do Rio (nome artístico de Paulo Barreto) foi o grande decadentista brasileiro. Sua admiração pelo Oscar Wilde de O retrato de Dorian Gray, essa obra-prima da ficção universal, evidencia-se no empenho de traduzir nada menos que cinco livros do escritor escocês. O Decadentismo surgiu na França, especialmente devido ao choque causado pela poesia de Baudelaire: alguns autores apodados na imprensa de “decadentes” inverteram o significado da imputação, tomando-a para si como distinção de uma arte que trazia à luz os intestinos podres da civilização. É um movimento complexo, muito ligado ao sentimento de infelicidade causado nas elites europeias pela conclusão de que a cultura ocidental havia fracassado – se era para resultar na Guerra Franco-prussiana, encerrada em 1875, aquela horrível carnificina que deu o primeiro exemplo do que significavam as aplicações militares da tecnologia industrial.
O Brasil, é claro, tinha a ver com aquele estado de espírito somente na medida em que a elite local, principalmente no Rio – então capital da recente república –, imitava tudo o que vinha da França. Daí que os principais personagens de João do Rio sejam pessoas elegantes, cujas conversas de salão se tornam pretexto para a introdução de narrativas. Nestas, sim, entram algumas vezes as misérias do nosso subdesenvolvimento, se não forem misérias humanas de todos os tempos e lugares. Assim, Dentro da noite tem uma temática anfíbia: ora trata da decadência moral dos ricos e de seus satélites sociais, obsessivamente diagnosticados como portadores da “nevrose” que logo a seguir, com a psicanálise, comporia um inteiro catálogo de neuroses e perversões; ora tematiza o cortejo de tragédias da pobreza.
Como exemplo daquela espécie de doença moral (a “nevrose”), merece destaque o protagonista de “A mais estranha moléstia”, Oscar Flores. Esse sujeito confessa ao narrador, numa conversa de bar, ser possuído pela obsessão do olfato. Seu discurso – e personagens que discursam em vez de conversar são um defeito do livro – praticamente traduz uma síntese de duas fontes: o famosíssimo poema “Correspondências”, de Baudelaire, no qual fica teorizada para sempre a equivalência entre os sentidos corporais, além dos efeitos mentais e espirituais do sensório humano, e as imaginações loucas de Des Esseintes, protagonista do romance Às avessas (1884), de Joris-Karl Huysmans, outro modelo da literatura decadentista. A estranheza dessas ideias resulta em alguns dos melhores trechos do estilo de João do Rio:
O que eu sinto não o dizem palavras. É preciso descobrir frases prismáticas como certos
cristais e vê-las à luz do sentimento, que percebe para além das coisas visíveis. Os deuses
gostavam de perfumes; o perfume exorta e exalta. Porque lisonjear os deuses com
perfumes, se não tivéssemos a ideia do sacrifício, do grande pecado da natureza, que
ele representa? Há flores cujo perfume é cínico, outras cujo cheiro é banal, outras cujo
olor se celestiza, outras ainda que nos dão desesperos de carne. É possível ter à lapela
uma gardênia sem sentir cefalalgias horas depois? É possível cheirar certas rosas sem
odiá-las.
Ademais de comprazer-se num preciosismo de sensações que se replica no registro da linguagem, o escritor carioca outras vezes aproveita suas andanças pelo Rio boêmio e pelos subúrbios para narrar situações típicas do cotidiano da população mais desamparada. Nessa linha, são tocantes os contos “Coração” e “Última noite”. No primeiro, um infeliz professor de matemática luta contra a doença de sua única filha. No outro, um desocupado vagueia pela noite num trem, por não ter onde dormir, e ao amanhecer é vitimado por um estúpido acidente – no fundo, talvez a única saída que havia para seu desespero feito de abandono e humilhação.
Há muito mais. A paleta estilística e temática do autor permite, certamente, leituras muito mais nuançadas e vagarosas. Fica por enquanto apenas a indicação: João do Rio merece ser mais conhecido, ainda que não possa ser o herói literário que andam tentando fazer dele. Leituras ideologizadas de sua obra esbarrarão sobretudo no capítulo mais desenvolvido da série de reportagens As religiões do Rio (1904), que hoje seria considerado extremamente preconceituoso pelo modo como trata as manifestações religiosas de origem africana.
Título: Dentro da Noite
Autor: João do Rio
Gênero: Contos | Literatura Brasileira
Ano da edição: 2002
ISBN: 9788589363020
Selo: Antiqua
Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.
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