E que não falte a boemia, para que pior não seja

A imagem é uma arte em pintura que mostra três homens sentados em torno de uma mesa em um ambiente simples. Os homens são os sambistas Cartola, Ismael Silva e Mano Décio da Viola. Na mesa há uma garrafa de vidro marrom, dois copos com bebida amarela, um cinzeiro com bitucas de cigarro e luz suave em tons quentes, criando um clima nostálgico.
Cartola, Ismael Silva e Mano Décio da Viola – três grandes sambistas brasileiros. (Arte: Kawanny Lima/Art Station)

Grosso modo, poder-se-ia definir a boemia como sendo, geralmente, uma espécie muito peculiar de socialização, a saber: a socialização, regada a álcool e/ou “otras cositas más”, de pessoas, digamos, se não culturalmente dotadas, culturalmente alternativas, descoladas, distintas (SEIGEL, 1992).

Razão pela qual a “chapação”, por exemplo, de um bando de caipiras fascistoides ou, na verdade, de grupos de boçais de qualquer natureza (sob esse aspecto sendo irrelevante se pobre, vulgar, filisteu, burguês, playboy, endinheirado, ostentador etc.), não se compatibilizar a contento com a ideia de boemia propriamente dita, embora, como sabido e ressabido, a socialização mediada por estupefacientes se verificar em toda parte e ser tão velha quanto a humanidade (ROSZAK, 1972).

A bem ver, o que faz a experiência boêmia, o boemizar, em seu sentido histórico-sociológico moderno, são senão os tipos especiais a protagonizar a socialização “aditivada” de que aqui se está a tratar, como, por exemplo (para lembrar os mais emblemáticos), estudantes, professores, escritores, poetas, filósofos, cientistas, pintores, artistas, músicos, jornalistas, editores, galeristas, anarquistas e, vez por outra, políticos, parte do funcionalismo público, algumas figuras de profissional liberal (como o advogado, o psicólogo, o psicanalista) e desportistas indisciplinados – sem prejuízo, naturalmente, de certas personagens oriundas da dita “marginalidade” e/ou “alta sociedade” (a exemplo dos mecenas) (SEIGEL, 1992).

Donde as interações, as conversações, as trocas, os relacionamentos, os flertes, os valores, as ideologias, as prioridades, as expectativas, os padrões, os projetos e as conexões que perfazem o estofo da socialização propriamente boêmia diferirem tão expressivamente daqueles conformadores do estofo de sua versão falsificada ordinária, com frequência chegando mesmo a se excluírem mutuamente (HEMINGWAY, 1978).

Pois, a não ser assim e seria preciso encarar como boemia qualquer catado de “chapado” (as avenidas, os bares, as casas de lazer e os espetáculos da indústria cultural, aos finais de semana, estão repletos desses catados) e boêmio qualquer sujeito dado a alguma forma de entorpecimento e comportamento liberal, a exemplo do patrãozinho excêntrico metido a festeiro (… e a se envolver em crimes contra a liberdade sexual e de embriaguez ao volante).

A propósito, não se engane: a crer nos entendedores, a reunião social de uma cambada distinta apenas pela grana – ou algo que o valha, como posição social, status e poder – e pela luxúria excêntrica que normalmente a acompanha não faz a boemia, ou, de todo modo, não é suficiente para fazê-la. Assente que o essencial para a sua caracterização, insiste-se, é a confraternização dionisíaca de pessoas espiritualmente aristocráticas, para falar à maneira romântica.

Trocando em miúdos: toda boemia é “chapada” (se bem que segundo graus e modos variados), mas nem toda “chapação” é boêmia. Toda boemia é algo excêntrica e espiritualmente nobre, mas nem toda excentricidade elitista é boêmia (longe disso).

De modo que, absolutamente, cumpre não confundir a corte com o cenáculo (BALZAC, 1981), o qual, aliás, não necessariamente terá por referência a capital mundana, a cidade babilônica, o bairro desbundado, a rua mal-afamada, o submundo, a praça, o bulevar, a festa, o lupanar, a ronda dos bares, a soirée, o litoral, mas também e quiçá principalmente o campo (vide a boemia bucólica, ou, para usar um termo da moda, cottagecore), o camping, a república estudantil, o café intimista, o boteco, as rodas de música, o sarau, o festim privado, a matinée com os habitués da casa, o ateliê, o gabinete, a alcova, o interior.

De fato, da perspectiva histórico-sociológica, por mais ambígua e hipócrita que seja a relação entre o boêmio e o burguês, não raro este custeando aquele – até mesmo dentro da dinâmica de vida de uma mesma pessoa: o burguês do meio de semana (e/ou do dia) bancando o boêmio do final de semana (e/ou da noite) –, não se pode olvidar que o boemismo, ao menos teórica e ideologicamente, começa por se definir em contraposição categórica ao ethos burguês.

Épater la bourgeoisie/Chocar a burguesia é e continua sendo a palavra de ordem e a divisa de qualquer boêmio digno desse nome (SEIGEL, 1992). Sendo essa a razão de comumente se preferir falar em termos de “boemia e não-boemia” em vez de “baixa, média e alta boemia”, caso em que esta última coincidiria com a boemia genuína.

Inclusive, não por acaso já se disse – ora para difamar, ora com orgulho, mas como quer que seja muito sugestivamente – que a boemia, em grande medida, tende a ser coisa de “canhota”, vale dizer, da “esquerda cultural” ou “festiva”. A despeito da necessidade de se ter em mente, caso se leve esse palpite a sério, que, em parte, nem toda esquerda é ou precisa ser boêmia (bastaria lembrar o comunismo de feitio puritano), e, em parte, a boemia, por óbvio, não é e não precisa ser de todo homogênea, na realidade tendendo a existir, sob o ângulo político-ideológico em questão, tantas formas de boemia quantas formas de “esquerda cultural” houver (LOTTMAN, 2009).

Por seu turno, quanto à relação da direita com a boemia, não parece fácil indicar bons exemplos. Com exceção de boemistas à la Nelson Rodrigues (CASTRO, 1992), o mais comum, já há algum tempo, tem sido a tentativa de apropriação de elementos do modus vivendi e do imaginário boêmios por parte de direitistas do tipo (neo)liberal progressista – o “burguês boêmio” ou “bobo” (no sentido de síntese de duas palavras opostas: bohemians/boêmios e bourgeois/burgueses) de que nos fala Brooks (2002). Boemia de boutique, portanto.

Isso posto, seria o caso de se concluir então que:

(1) por se tratar, geralmente, de uma forma de socialização, de experiência social, praticamente inexiste “boemia de um homem só” – tanto que, não fosse a existência dos Bukowskis (SOUNES, 2016), e diríamos que “boêmio misantropo” seria um oximoro; por sinal, muito da esfuziante alegria boêmia parece consistir, precisamente, na fruição da amizade enquanto o regozijo mútuo com a identificação e a complementaridade, no caso, a identificação e a complementaridade de indivíduos, sob diversos aspectos, marcadamente excepcionais em termos subjetivo-culturais – a consanguinidade de espírito, a despeito das diferenças de opinião, a que alude Proust (2006, p. 25);

(2) a sede de embriaguez dionisíaca que consome a alma boêmia parece se deixar reconduzir, de alguma forma, à necessidade de “despressurização existencial” da tensão apolínea, comum a todas as pessoas, mas sentida mais recorrente e visceralmente pelo boêmio – o que não significa, advirta-se, que boemizar seja inevitavelmente o único e tampouco o melhor meio para lidar com tal necessidade de “despressurização existencial”, até porque, conforme pontificado por uma das encarnações mais lendárias da vida boêmia, Baudelaire (1995), aqui o importante é embriagar-se, sendo irrelevante se de vinho, virtude ou poesia; e

(3) boemia, em essência, é senão entorpecimento sociorrecreativo, porém – e esta ressalva é relevante –, não do tipo praticado por 9/10 da humanidade, e sim do tipo praticado por parcela daquele 1/10 da espécie humana (com efeito, nem todos deste 1/10 são ou sempre serão boêmios) subjetivamente jorrante.

Referências Bibliográficas  

BALZAC, Honoré de. Ilusões perdidas. Trad. Ernesto Pelanda; e Mario Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

BAUDELAIRE, Charles. Embebedai-vos. In: O Spleen de Paris: Pequenos poemas em prosa. Trad. Leda Tenório da Motta. Imago Editora – edição 1995.

BROOKS, David. Bobos no paraíso: A nova classe alta e como chegou lá. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: A vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

HEMINGWAY, Ernest. Paris é uma festa. Trad. Ênio Silveira. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

LOTTMAN, Herbet R. A Rive Gauche: Escritores, artistas e políticos em Paris, 1934-1953. Trad. Isaac Piltcher. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: À sombra das raparigas em flor. Trad. Mario Quintana. 3 ed. São Paulo: Globo, 2006.

ROSZAK, Theodore. A contracultura: Reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Trad. Donaldson M. Garschagen. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda., 1972.

SEIGEL, Jerrold. Paris boêmia: Cultura, política e os limites da vida burguesa (1830-1930). Trad. Magda Lopes. Porto Alegre: L&PM, 1992.

SOUNES, Howard. Bukowski: Vida e loucuras de um velho safado. Trad. Tatiana Antunes. São Paulo: Veneta, 2016.

 

Waldir Severiano de Medeiros Júnior é pós-doutorando em Direito e Justiça (FDUFMG). Mestre e Doutor em Direito e Justiça (FDUFMG). Professor de Sociologia Jurídica (Grupo Unis – Varginha e Três Pontas). Professor colaborador de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG. Consultor Jurídico (OAB-MG 216.370). Temas de interesse e sobre os quais poderia escrever ou comentar em áudio: Direito, Filosofia, Política e Administração Pública.

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