História e as notícias falsas: O papel da universidade a serviço da verdade

Quadro “A Verdade Saindo do Poço”, de Jean-León Gérôme, pintado em óleo sobre tela no ano de 1896, exposto no Museu Anne de Beaujeu em Moulins, na França. (Imagem: Reprodução/Internet)

Neste mês de abril de 2025, a Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG) sediou o evento Divulgação Científica em Pauta, no âmbito do projeto +Ciência, e tratou de um dos temas mais desafiadores da nossa época: notícias falsas. Desafiador porque abundante em discussões que, em muitos casos, pouco parecem resultar em medidas concretas, eficientes e imediatas diante deste tão persistente fenômeno. Sem a devida checagem, notícias falsas colocam em risco não só o nosso atual modelo de democracia, mas também a própria (e frágil) coesão social que vivemos.

Nesse sentido, a UNIFAL-MG se ajusta ao difícil papel das universidades, que é interferir decisivamente em assuntos do cotidiano imediato de todos nós, nos mais diversos níveis, tanto o econômico, quanto o social ou o político. Por isso, a universidade acerta sobeja e corajosamente ao olhar de frente para o problema com as diversas e potentes armas de que dispõe.

Ao assumir a precípua tarefa de mediadora entre os problemas e as soluções, a UNIFAL-MG já promove, em si, parte do discurso necessário para o combate às notícias falsas, a saber, que o conhecimento produzido nos níveis universitários possa escoar livre, penetrando nos cenários onde as chamadas “fake news” tem tanta vascularidade. Sabemos que a luta é desigual. Frente ao conhecimento produzido pelas universidades, o volume de informações inverídicas é um vertedouro infinitamente maior, mas folga saber que há resistência.

O uso disseminado no Brasil da expressão em língua inglesa “fake news” já demonstra um campo favorável à proliferação de construções no mínimo ilegítimas, que contribuem com um sistema de desinformação que penetra pelas redes sociais sem que tenhamos, até hoje, um efetivo controle para contê-lo. Na nossa cultura, por conta de uma complexa construção histórica e cultural, amortecemos e absorvemos o que vem de fora sem que isso seja necessariamente um problema.

Trata-se de uma habilidade que, em si, não seria nociva, mas que, olhada por outro lado, é veiculadora de um imaginário coletivo frágil, quando não inautêntico. É um quadro que carece de fortalecimento educacional que melhor prepare o cidadão para responder às ameaças à verdade.

Tão alóctone quanto expressões estrangeiras, passeando à paisana no nosso vocabulário, é a convivência atual da inverdade nos meios de comunicação multiplicados exponencialmente nos últimos vinte anos. Falando assim, soa como se a mentira, aquela que tem perna curta, pudesse ter vida própria e a verdade fosse sua irmã gêmea que também sobrevive e opera entre nós autonomamente. Não, isso não é real. A mentira é uma sustentação humana, mais até do que a verdade, pois precisa ser fabricada e artificialmente mantida.

E não me refiro àquela mentira elogiada por Dostoievsky em Crime e Castigo, quando diz que mentir bem é uma espécie de arte. Esta de que trato aqui, pode até ter contornos hábeis e maliciosos, beirando o espetáculo e, se o for, o faz se aproximando de uma arte bastante macabra. Enfim, a mentira sempre usou da morfologia da verdade para atingir seus objetivos. Basta que lembremos da parábola contada sobre o encontro entre a mentira e a verdade, na qual a primeira toma as vestes da segunda e sai pelo mundo, retratada por Jean-Léon Gérôme, em 1896[1].

A própria história registrou, desde temporalidades recuadas, episódios marcados por documentos aparentemente verdadeiros, mas que se mostraram vetores de inverdades. E não só inverdades guardadas em gavetas, mas de falsidades que, encaradas como críveis, interferiram nos caminhos históricos das sociedades onde foram fabricadas. Poderíamos ter uma lista tão extensa quanto pretérita nos registros da ciência histórica, mas só para ficar em dois exemplos da trajetória recente do Brasil, temos o Plano Cohen, de 1937, e a Carta Brandi, de 1955.

Correio da Manhã de 1 de outubro de 1937, anunciando a “apreensão” do Plano Cohen pelo Estado-Maior do Exército. (Imagem: Reprodução/Wikipédia)

O primeiro caso caiu bem a Getúlio Vargas que, ao tentar prolongar seu mandato, fruto de um golpe em 1930, carecia em 1937 de justificativas para sua permanência no poder. A figura central no contexto é Olímpio Mourão[2], então Chefe do Estado Maior das Forças Militares brasileiras e figura carimbada dos golpes militares do século XX. Mourão também era integrante da Aliança Integralista Brasileira (AIB), grupo que emulava valores fascistas.

O militar escreveu uma carta, fruto da mistura de conspiração ficcional e antissemitismo, detalhando como seria a tomada hipoteticamente imaginada de poder no Brasil por forças comunistas. Ele assinou o documento falso, se passando pelo líder comunista húngaro Bela Khun, posteriormente assumindo a grafia do sobrenome Cohen, comumente utilizado por pessoas de ascendência judia.

A carta era um exercício pedido por Plinio Salgado, líder da AIB. A ideia era se preparar para uma imaginária e nunca executada alternativa de como seria se os comunistas tomassem o país. Quando Olímpio apresentou o trabalho concluído, Plínio declinou da proposta. Frustrado, Olímpio Mourão então levou a carta até um membro do Supremo Tribunal Militar que o encaminhou a Góis Monteiro, então ministro da Guerra e braço militar de Getúlio Vargas.

Em 30 de novembro de 1937, a carta foi lida em rede nacional de rádio e passada como verdade, buscando produzir na população o medo de um domínio estrangeiro, tornando-se, efetivamente, mais uma justificativa da manutenção de Getúlio no poder. Só em 1945, com Getúlio em vias de deixar a presidência, é que Olímpio Mourão admitiu que o plano redigido por Mourão era falso.

Fac-símile da carta Brandi publicada em Tribuna da Imprensa. (Imagem: Reprodução/ ResearchGate)

Igualmente espetacularizada nas páginas da história nacional foi a Carta Brandi. Nas vésperas das eleições de 1955, contando com forte aparato da mídia nacional, a forjada missiva atribuída ao deputado provincial argentino Antonio Jesus Brandi veio a público. Ela detalhava o nunca existente tráfico de armas na fronteira gaúcha da Argentina para o Brasil, apresentando um plano fictício de que João Goulart tramava um golpe para transformar o país em uma república peronista e sindical. Juscelino Kubitschek (PSD) candidato a presidente e Jango (PTB), a vice, eram favoritos frente a Juarez Távora, candidato da elite econômica de então pela UDN.

A Carta Brandi foi amplamente divulgada por Carlos Lacerda, conhecido ex-membro do Partido Comunista Brasileiro que, uma vez expulso da sigla, se transformou no mais estridente opositor das esquerdas e da liderança progressista do Brasil. Dezessete dias antes das eleições de outubro de 1955, Lacerda foi à TV-Rio e falou do documento acusando Goulart de golpe contra o estado nacional brasileiro.

No dia seguinte ele divulgou no jornal que dirigia, Tribuna de Imprensa, a tal carta na íntegra, datilografada e com o timbre da província de Corrientes. Nada ali era verdadeiro, mas suas consequências contribuíram para desestabilizar o pleito que se aproximava[3]. Apesar disso, Juscelino venceu as eleições para presidente com pouco mais de 35% dos votos válidos e Goulart eleito como vice-presidente com mais de 44% dos votos[4]. Ainda que eleitos, a desestabilização enquanto elemento de tensão política brasileira se acirrou neste episódio, dando porosidade à sustentação democrática que menos de dez anos depois ruiu tendo o próprio João Goulart no epicentro do golpe militar de 1964.

Iniciativas como a da UNIFAL-MG muito têm a dizer ao tempo presente na medida em que se encontra aberto ainda no Supremo Tribunal Federal o inquérito 4781, que apura a máquina de notícias falsas e a constituição do que ficou conhecido por ‘gabinete do ódio’, e que foi protocolado em março de 2019.

Por isso, levantar reflexões sobre a veiculação de notícias falsas por mídias nem sempre acreditadas é se alinhar na defesa da verdade, tal qual a tradição hebraica, por exemplo, acredita. A verdade, entendida no sentido do vocábulo ‘emet’, ou seja, aquilo que por si só se basta, antípoda da mentira, que sempre necessitará novas criações para se manter, é tema que carece estar na ordem do dia na pesquisa acadêmica. Pois enquanto se mantém, a mentira travestida de verdade é mãe de todos os ódios que ameaçam o nosso estado democrático de direito a favor das oligarquias sempre à espreita do poder, como condenava Philip Jones (1965).

 Referências

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Porto Alegre: LP&M, 2007

JONES, Philip. Communes and Despots: The Cities States in Late-Medieval Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 1965.

Jean-León Gérôme. A Verdade Saindo do Poço. 1896. Óleo sobre tela. 91 x 72 cm. Museu Anne de Beaujeu. Moulins-França. Disponível em (https://dasculturas.com/2018/10/06/reza-uma-lenda-do-sec-xix-que-um-dia-a-verdade-e-a-mentira-encontraram-se-autor-desconhecido/). Acesso 19 de abril de 2025.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O Mito da Conspiração Judaico-Comunista. Revista de História FFLCH-USP, São Paulo, n.138, Jun. 1998.

SANTOS, Rodolpho Gauthier Cardoso. Uma missiva contra o peronismo tupiniquim – Carlos Lacerda, Tribuna da Imprensa e a carta Brandi (1955). Antíteses, [S. l.], v. 10, n. 19, p. 137–164, 2017.

[1] O quadro, óleo sobre tela, de 91 x 72 cm, nomeado como “A verdade saindo do poço” é parte da coleção do Museu Anne de Beaujeu em Moulins, na França.

[2] Não confundir com o atual senador Hamilton Mourão, que é general e foi vice-presidente entre 2018-2022, eleito para o senado em 2022.

[3] As investigações conduzidas à época por Emílio Maurell Filho, secretário-geral do Ministério da Guerra, levaram até dois argentinos que viviam no rio. Segundo o que foi apurado eles forjaram a carta e passaram para Lacerda. Os dois foram presos.

[4]  Na época a constituição previa eleições majoritárias para o governo do país em que a votação para Presidente e para Vice eram separadas, podendo ter um eleito de uma chapa e outro de outra.

Fontes Eletrônicas

https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-prorroga-inquerito-das-fake-news-por-180-dias/

Lucas Magalhães Costa é doutorando em História e Culturas Políticas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em História Ibérica pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Um dos palestrantes no evento +Ciência, sediado no campus sede em Alfenas, em 23 de abril de 2025. E-mail: lc.ara@hotmail.com

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