Idosas dos Centros de Convivência de Poços de Caldas viram pela primeira vez a estrutura de um bicho‑pau num estereomicroscópio e compartilharam histórias sobre abelhas, formigas e borboletas. A experiência fez parte de uma pesquisa pioneira desenvolvida pela pedagoga Samantha Martins Ferreira, mestra e doutoranda em Ciências Ambientais pela UNIFAL‑MG, que reuniu insetos, rodas de conversa e uma turma de 87 idosos de Poços de Caldas para valorizar saberes antigos, promover educação ambiental e transformar percepções sobre essas criaturas.
Realizado no Programa de Pós‑Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA) do campus de Poços de Caldas da UNIFAL-MG, o estudo contou com a orientação do professor Ernesto de Oliveira Canedo Júnior, vice‑diretor da UEMG local. Samantha, que também integra o Laboratório de Entomologia e Educação da UEMG, colocou em prática um projeto que dialoga com ciência e cultura. “Foi a primeira pesquisa que buscou aproximar a Educação Ambiental dos saberes culturais dos idosos de Poços de Caldas por meio dos insetos. Somos pioneiros sobre o assunto na região. A experiência foi enriquecedora e mostrou como a ciência pode dialogar com a cultura e, principalmente, valorizar os conhecimentos da terceira idade”, conta a pesquisadora.

Entre fevereiro e março de 2024, as entrevistas aconteceram em sete grupos dos CRAS e em um grupo da Universidade Aberta para a Maturidade (UNABEM/UEMG), sempre com uma roda de conversa e uma atividade prática no mesmo encontro. Nas mesas havia caixas entomológicas, tablets, notebooks, câmeras e insetos vivos: barata‑de‑Madagascar, bicho‑pau, formigas. “Muitos relataram que nunca tinham visto um microscópio de perto. Observar os detalhes dos insetos de forma ampliada foi uma experiência marcante, reforçando a importância de levar a ciência para fora dos muros das universidades”, destaca Samantha.
Segundo o orientador do estudo, a palavra “inseto” suscitava reações de medo e nojo; ao final, havia curiosidade, entusiasmo e admiração. O professor Ernesto aponta: “Quando falamos que trabalhamos com insetos, a primeira reação da maioria das pessoas é de medo e/ou nojo. Entretanto, no decorrer das atividades, os próprios participantes perceberam que estes animais fazem parte de seu dia a dia… no final da pesquisa todos puderam compartilhar seus saberes, aprender mais sobre os insetos, mudar percepções negativas e se tornarem mais sensíveis às questões de conservação ambiental”.
Sobre o estudo
Samantha chama os participantes de colaboradoras, para ressaltar o protagonismo delas. Das 87 pessoas envolvidas, 93% eram mulheres com idade média de 70 anos, ensino fundamental incompleto, donas de casa e moradoras da zona urbana. Elas fazem parte dos programas sociais do município e aceitaram dividir memórias e vivências. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética (parecer nº 6.543.721) e contou com apoio da UEMG Poços de Caldas, que providenciou transporte e impressões.
A metodologia combinou entrevistas semiestruturadas com uma prática de observação de insetos a olho nu e com microscópio. Antes e depois das atividades, Samantha registrou anotações sobre as reações dos participantes. Ao todo, foram citadas 66 etnoespécies, sendo 75 % insetos. Abelhas (57 menções), pernilongos e mosquitos (29 e 27), baratas (23) e borboletas lideraram as lembranças. Nem sempre os nomes eram corretos — aranhas, escorpiões e cobras apareciam na lista —, mas durante a observação a memória aflorava: ao ver as caixas entomológicas, muitos identificavam espécies que não haviam lembrado inicialmente.

Outras descobertas surgiram: 68% das lembranças envolviam picadas, 16 % queimaduras e 5 % mordidas. A maioria das experiências era descrita como negativa, mas as rodas de conversa ressignificaram esse sentimento. Os relatos de etnoconhecimentos incluíam receitas e simpatias — como usar vísceras de taturanas para aliviar queimaduras ou cheirar ácido fórmico de formigas contra dor de cabeça — e músicas ou ditos populares transmitidos por gerações.
“O envelhecimento da população de Poços de Caldas é notável e esses idosos são detentores de conhecimentos populares que compõem a identidade cultural da região”, explica Samantha. Ao reunir ciência e tradição, o estudo promoveu inclusão social, valorizou a memória e despertou comportamentos pró‑ambientais. “Nos surtos de dengue, elas viam os mosquitos como inimigos, mas ao final reconheceram que insetos também têm aspectos positivos e que devem ser preservados”, lembra a pesquisadora.
Os resultados já renderam dois artigos científicos, um dos quais está entre os mais acessados na área. A repercussão foi tanta que novas frentes se abriram: Samantha ingressou no doutorado, onde pretende levar a educação ambiental e a ciência cidadã para turmas da Educação de Jovens e Adultos em quatro cidades mineiras. E, junto ao orientador da pesquisa, atua no projeto Insectoológico, que leva insetos e práticas lúdicas às escolas. “Na escola onde atuo na educação infantil, dou aulas semanais sobre insetos e coordeno projetos de horta e separação do lixo. É essencial sensibilizar desde cedo para a biodiversidade”, diz.
Para o professor Ernesto, a mensagem que fica é clara: “Os idosos são guardiões dos conhecimentos tradicionais e guias para compreendermos melhor o meio ambiente. Precisamos ouvi‑los com atenção e carinho, porque ali há saberes que podem orientar novas abordagens de sensibilização ambiental e conservação da natureza”, afirma.
Os depoimentos demonstram que a pesquisa abre portas e mostra que a ciência pode ser construída em diálogo com a comunidade e que há encantamento mesmo em olhar uma barata de perto — uma lição que ficará na memória de quem participou e de quem lê os resultados.
Saiba mais
Os interessados podem acessar a dissertação completa de Samantha Martins Ferreira no repositório da UNIFAL‑MG, disponível em: https://www.unifal-mg.edu.br/ppgca/wp-content/uploads/sites/188/2025/01/CONHECIMENTOS-E-PERCEPCOES-DE-IDOSOS-PARTICIPANTES-DE-PROGRAMAS-SOCIAIS-SOBRE-INSETOS-PROMOVENDO-EDUCACAO-AMBIENTAL-E-VALORIZANDO-ETNOCONHECIMENTOs-1812.pdf.
Os resultados também foram publicados em dois artigos científicos: “Insetos e Educação Ambiental: abordagens etnoentomológicas com idosos participantes de programas sociais” (Revista Ambiente & Educação) disponível em https://periodicos.furg.br/ambeduc/article/view/18122; e “Idosos e insetos: conhecimentos etnoentomológicos e valorização dos conhecimentos tradicionais” (Revista Interações) pode ser lido em https://interacoes.ucdb.br/interacoes/article/view/4701.