Javalis no Quintal

Foi em meio à diversidade de autoras e autores afro-brasileiros, cujas obras discutem questões relevantes sobre a identidade, resistência, ancestralidade, valorização da memória, e suas contribuições para a formação da sociedade brasileira, que surgiu o nome de Ana Paula Maia, escritora e roteirista brasileira, e o interesse por abordar a coletânea de contos Javalis no Quintal e outras histórias (2016) e, entre eles, de forma especifica, o conto homônimo, Javalis no Quintal, um dos contos mais intrigantes e enigmáticos da compilação.

A leitura do conto, além de surpreender do início ao fim, proporcionou o típico “desconforto” que as narrativas de Maia sempre garantem: elas são permeadas por temas como morte violenta, miséria, doença e crime, exibindo personagens em situações de extremo desconforto e fragilidade, que provocam uma profunda reflexão ao retratar a violência crua da realidade social, o trabalho braçal e a relação entre humanos e animais em contextos de desamparo. Sua escrita, que rompe com o convencional, força o leitor a confrontar a desumanização, a miséria e a existência em condições-limite, ao mesmo tempo em que revela a dignidade e a humanidade de personagens marginalizados e brutais.

Na coletânea de contos Javalis no Quintal e outras histórias, o leitor acompanha quatro histórias protagonizadas por diferentes personagens. Em Esporo, um dos contos, a autora apresenta uma história que lida com o inusitado e, ao mesmo tempo, perturbador, por envolver a manicure Rosália que anseia ver o sangue escorrer dos dedos de suas clientes, ferindo-as, intencionalmente, com alicates infectados para espalhar doenças. Já em O Fosso, o conto se passa durante a Guerra do Vietnã e desenvolve por meio da conversa de dois soldados americanos. A narrativa discorre sobre a experiência da guerra, o absurdo do conflito e a desumanização. Em Desmedido Roger, outro dos contos, a trama envolve um personagem chamado Roger, um homem recém demitido que tenta lidar com a frustação e vê algo que o atormenta, uma história que se caracteriza por explorar o tema da violência e da ausência de limites morais.

Em Javalis no Quintal, conto que dá nome à coletânea e assunto da resenha, se narra a história do retorno de Eulálio Marvim para sua terra natal e de outros personagens que vivem em um ambiente rural, possivelmente um sítio, que lidam com a presença de javalis, explorando aspectos de brutalidade e bizarrice em um contexto cotidiano com elementos de violência explícita. Assim, com a volta de Eulálio, o personagem tem de enfrentar um “dever” que não cumpriu no passado e será determinante para uma estadia tranquila no sítio em que cresceu.

Numa tarde, enquanto lia na varanda de casa, Eulálio recebe a visita de seu vizinho Adamâncio e seu filho J.P. O vizinho se vangloria do filho que, como muitos daquela região, cumpriu a “regra social” imposta por lá: abateu seu primeiro javali. Adamâncio se aproveita da situação para alertar Eulálio que ele tem de fazer o mesmo, ou seja, abater um javali o quanto antes, se não, não poderá ser bem-visto na região. Determinado, Eulálio se empenha para cumprir essa “regra social” imposta pela pequena comunidade e se desloca para o meio do mato indo atrás de um javali, com uma forte chuva que o atrapalha, mas encontrando um javali escondido. Porém, nessa situação embaraçosa, ele acaba dando tiros sem destino certo, e acerta um velho amigo de seu pai, que no passado havia zombado de Eulálio por não ter uma mira boa.

Ainda abalado com a morte que causou, Eulálio escuta um barulho e segue se movimentando para o leste com o rifle carregado em suas mãos. No meio do mato, Eulálio, surpreso, percebe que ele é quem está sendo caçado, e entra em desespero. Ele tenta correr de volta para casa, mas no meio disso acaba caindo enquanto vê o dorso preto e espinhoso de um javali.

Leva cerca de vinte minutos para morrer. Os javalis não querem sua carne, somente eviscerá-lo. São animais que preferem tubérculos e raízes. São animais que não devem ser caçados à revelia. Ao ser devorado fecha os olhos, pois é tão somente um horror desmedido. Enquanto as trevas o cobrem lentamente, sente que muito pouco lhe resta.

O conto “Javalis no quintal” apresenta uma narrativa intensa e sombria, centrada na figura de Eulálio Marvim, homem dividido entre o mundo rural de onde veio e a civilização urbana. Ambientado em uma região marcada por planícies e fazendas. O texto explora o embate entre civilização e instinto, tendo como plano de fundo a masculinidade medida pela capacidade de exercer a violência. Dessa maneira, o conto problematiza essa ideia, revelando-a como uma construção social opressora. Desde as linhas iniciais, cria-se uma atmosfera de tensão. Nesse caso, o cenário rural não é descrito com romantismo, mas sim, com uma certa crueza sensorial, até marcada por cheiros. Numa entrevista da autora fornecida ao site Rascunho, O jornal da Literatura do Brasil, em 2011, comentou:

Acho javali uma coisa incrível — bichão, fortão e porco. História de caçador é muito diferente. Acho muito legal. Quando era adolescente, queria dar tiro, queria aprender e o meu pai não deixou. Depois, perdi a vontade de aprender a atirar. Na vida real, não sou a favor de caçar nem de matar, mas esteticamente é interessante. E, na literatura, posso falar de coisas que não são politicamente corretas ou esteticamente bonitas […] Não gosto muito do convencional, daquela repetição. Vejo essa beleza nas coisas pouco convencionais, meio estranhas. Uma caçada de javalis, acho incrível. Gosto de focar em lugares, em histórias, que estão distantes de mim, mas que me trazem muito. Não me lembro como me deparei para escrever sobre o javali, mas achei o bicho tão interessante. Achei que rendia um grande personagem porque é um animal com características muito interessantes. Não só a questão anatômica e poderosa do javali, mas a questão do caráter, das reações. Como ele vive, como lida com o mundo. É um personagem interessantíssimo que ainda não se esgotou para mim. Ainda tem muito javali que quero destrinchar. Tenho interesse por certas histórias que me agradam pela imagem, pela estética, pelas possibilidades que tenho de andar por aquele universo.

Outro elemento fundamental é a presença simbólica do pai. Embora morto, ele habita na casa através das paredes cobertas de cabeças de animais e recordações de caçadas.

Seu pai levou décadas para concluir a decoração de morte e bravura que adorna as paredes da casa. Estica o pescoço e espia os livros numa das estantes. Eulálio Marvim sente-se um homem ao meio, e no meio da sala se mantém meditando.

Eulálio Marvim vagueia em passos curtos pela grande sala de estar com as paredes revestidas de cabeças de animais empalhados, pássaros e fotos de caçadas. Desliza os dedos sobre as fotos, recriando reminiscências.

Os javalis, por sua vez, cumprem múltiplas funções simbólicas. Representam a natureza indomada que reage à violência humana, mas também os instintos reprimidos de Eulálio — a selvageria que ele tenta negar dentro de si. O conto denuncia que, sob a superfície da civilização, a violência continua a pulsar, pronta para emergir a qualquer momento.

Em síntese, Javalis no quintal, a narrativa se torna uma poderosa alegoria sobre a solidão masculina, o peso da identidade em um universo regido pela brutalidade. Mostra que a verdadeira “fera” não está na mata, mas dentro das pessoas, nos impulsos e nas tradições que insistem em definir o humano pela capacidade de destruir. O conto, portanto, não fala apenas de javalis ou de um homem do campo — fala da condição humana em sua dimensão mais trágica e contraditória: o desejo de dominar o mundo e a incapacidade de dominar a si mesmo.

Sobre Ana Paula Maia
(Foto: Reprodução)

Ana Paula Maia nasceu em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, em 1977. Atualmente mora em Curitiba. É escritora e roteirista. Na adolescência, tocou bateria em uma banda de punk rock e seu processo como leitora iniciou-se aos 18 anos de idade, quando começou a ler livros de filosofia, teatro e romance. Três anos após iniciar esse processo, começou a escrever. Fez graduação em Ciência da Computação, depois Comunicação Social, mas se formou apenas no primeiro. A escritora ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura pelas obras “Assim na terra como embaixo da terra” em 2018 e “Enterre seus mortos” em 2019. Como roteirista da TV Globo, foi responsável pela série Desalma.

Título original: Javalis no Quintal e outras estórias
Nome da autora: Ana Paula Maia
Gênero: Conto
Ano da edição: 2013
Páginas: 44
Editora: Independente
Onde encontrar: em livrarias físicas e online

Lívia Barbosa Teixeira é graduanda do curso de Letras – Línguas Estrangeiras da UNIFAL-MG. Atua como membro do Centro Acadêmico de Letras e do projeto de extensão Uma Amostra – Galeria Virtual.

Iris Carvalho Viveiros é graduanda do curso de Letras – Línguas Estrangeiras da UNIFAL-MG.

* Esta resenha foi selecionada em chamada para publicação nesta coluna ‘Literatura pelas Bordas’ durante o Mês da Consciência Negra. O texto passou pela supervisão da curadoria, presidida pelo professor Ítalo Oscar Riccardi León, do curso de Letras. 

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