Sem ser ainda uma obra-prima, Terras do sem-fim (1942) é, se visto por critérios exclusivamente literários, o ponto alto da obra de Jorge Amado. O enredo, tocado com mão de mestre, entrelaça os destinos de diversas personagens tendo como tela o drama coletivo social e ecológico da destruição de uma floresta no Sul da Bahia para ampliar o espaço da cultura cacaueira e os lucros de duas famílias rivais de grileiros, a dos irmãos Badaró e a do coronel Horácio da Silveira.
O romance tem o grande mérito de não se perder, como os da fase inicial do escritor (vide O país do Carnaval, de 1931), no maniqueísmo político, e tampouco no sentimentalismo piegas como os da segunda (Mar morto e Capitães da areia, respectivamente de 1936 e 1937). O instrumental narrativo de Amado parece ter evoluído para um aproveitamento equilibrado dos recursos mais eficazes desenvolvidos pela ficção realista do século XIX. E isso sem que fosse necessário replicar os exageros retóricos vigentes (com as notórias exceções) na literatura romântica e realista.
A narrativa começa com a partida de um navio que vai para Ilhéus, a sede da economia cacaueira e, não por acaso, o lugar onde nasceu Jorge Amado. A partir do encontro casual, nessa embarcação, entre várias das personagens, o narrador tece sua trama, que ganha densidade quando elas começam a participar, cada qual em sua medida, do embate entre os coronelões do cacau, de um lado Horácio e de outro os irmãos Juca e Sinhô Badaró. À medida que os capítulos correm, vão surgindo novos atores, entre os quais trabalhadores na lavoura do cacau e matadores de aluguel a serviço de cada uma das facções.
Há uma ênfase nos conflitos individuais, sobretudo à medida que se avizinha o inevitável choque entre os fazendeiros, ambos os lados da contenda interessados grilagem de terras sem dono (ou seja, públicas) localizadas na mata do Sequeiro Grande. O principal desses conflitos é o triângulo amoroso envolvendo a mulher do coronel Horácio, Ester, e o habilidoso advogado Virgílio. Os dois acabam tornando-se amantes, mas Ester, num segmento aparentemente inspirado em Madame Bovary (1957), apanha uma febre tropical que não conseguira abater seu marido.
Do lado dos Badaró, avulta a figura feminina de Don’Ana, única herdeira da família, cuja vontade máscula de poder se deixa dobrar pelo amor ao estelionatário e arrivista João Magalhães, manhoso jogador de cartas que se envolve, por um misto de amor e ambição, na disputa sangrenta pelas terras do Sequeiro Grande. Nada mais significativo, nesse sentido, do que o noivo de Don’Ana ganhar, a título de presente de casamento, um reluzente revólver.
Bem abaixo do palco principal fica o dos trabalhadores, cujos pés descalços impregnados pelo visgo do cacau pisam o chão mais concreto da História. Nesse nível se destaca sobretudo a loucura do jagunço Damião, que pela primeira vez, devido ao sentimento de culpa, erra um tiro; tornando-se fugitivo, enlouquece e por fim desaparece da história. Outro drama menor é o do desajeitado amor entre Raimunda, agregada dos Badaró, e Antônio Vítor, pacato trabalhador que, achando mais cômodo o ofício de jagunço, entra para o serviço criminoso da grilagem.
O ponto fraco do romance, embora menos do que na maior parte da obra de Jorge Amado, é a escrita um tanto desleixada. E às vezes desleixada “para melhor”, como na passagem em que Horácio, um ex-tropeiro grosseirão, emprega o pretérito mais-que-perfeito; podia ser pior, ele poderia lançar mão de uma mesóclise. Também é perfeitamente dispensável à economia do romance a presença autoelogiosa do autor, ainda criança, no julgamento fajuto em que Horácio é absolvido por unanimidade de um assassinato em que todos o sabiam mandante.
Para quem espera de um romance apenas a história bem contada, daquele tipo que mantém acesa o tempo todo a curiosidade do leitor, Terras do sem-fim — de que a Rede Globo fez uma bela adaptação para a telenovela no início dos anos 1980 — pode revelar-se um grande livro. De bônus, traz com seu desfecho uma ótima análise das edificantes formas assumidas com frequência, no Brasil, pelo que os economistas chamam “acumulação primitiva”. Na página final, depois de tanto morticínio, os cacaueiros davam “frutos enormes, as árvores carregadas desde os troncos até os mais altos galhos, cocos de tamanho nunca visto antes, a melhor terra do mundo para o plantio do cacau, terra adubada com sangue”.
Onde encontrar:
Companhia das Letras