Um adjetivo que Humberto Werneck não recusa ao texto alheio é o melhor para definir o seu próprio: delicioso. É assim, da primeira à última página, O desatino da rapaziada (1992), sua pequena história do jornalismo em Belo Horizonte. O subtítulo “Jornalistas e escritores em Minas Gerais” amplia um pouco demais o escopo dessa história, a não ser que se considere o fato de qualquer produção intelectual do Estado tornar-se relevante apenas quando divulgada em BH.
Formado ele próprio, como escritor, em redações de jornais, era inevitável a Werneck dar a seu livro certo sabor saudosista. Não foi apenas o tempo que passou: passou a época em que a qualidade do texto era o ingrediente mais relevante do jornalismo, e junto com ela a possibilidade de alguém, “apenas” por escrever bem, ser reconhecido como escritor competente. In illo tempore, cada jornal digno do nome tinha sua seção literária, ao passo que, de há uns 20 anos para cá, as “ilustradas” da vida se ocupam prioritariamente de fofocas sobre a intimidade sexual de “celebridades” com nada a celebrar além do dinheiro que ganham hipnotizando uma população de basbaques. Então, faz muito sentido que o penúltimo capítulo se intitule “Saudades de antigamente”.
Mas não é um saudosismo sentimental ou acrítico. O cronista – pois cada segmento do livro é a crônica de uma publicação ou de um grupo de autores a ela associado – é convincente na recriação do clima de aventura intelectual de três gerações de escritores, com ênfase nas duas primeiras: aquela em que pontificou Carlos Drummond de Andrade e a dos “quatro cavaleiros” imortalizados por Fernando Sabino em O encontro marcado (1956): o próprio Sabino, o lendário Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino (que foi ótimo poeta, além de psicanalista).
Para começar… Humberto Werneck sabe começar! Um “adolescente magrinho, de óculos” entra numa redação de jornal na Rua da Bahia; recentemente expulso do colégio por “insubordinação mental”, ele está atrevendo-se a deixar um artigo de sua autoria com o diretor do Diário de Minas. O ano é 1921, muito antes de o poema “No meio do caminho”, escrito pelo poeta ainda inédito em livro, causar furor ao ser publicado na Revista de Antropofagia, capitaneada por Oswald de Andrade.
A partir dessa estreia (pois aquele garoto que andava sem mexer os braços entregava ao jornal uma crítica de cinema e ela foi publicada), dada quando a nova capital mineira tinha pouco mais de 50 mil habitantes, Werneck desenrola um novelo cuja outra ponta é a divertida discussão da diáspora dessas três gerações de jornalistas que se tornaram escritores – ou escritores que precisaram ser jornalistas para ter uma profissão, já que todos sabem que literatura não dá camisa etc. E ele também soube terminar admiravelmente seu livro, registrando a frase ambígua e irônica com que Lara Resende respondeu à pergunta sobre a possibilidade de voltar a morar em Minas: “Meu filho, eu não mereço.”
No desenrolar do novelo, o autor de O desatino da rapaziada contou com poucos, embora privilegiados recursos: a releitura dos livros em que alguns desses personagens recordam sua participação na aventura de “inventar” a literatura mineira moderna, conversas com vários deles e uma excelente memória. Pois ele mesmo, Werneck, foi um dos integrantes da última geração, aquela que gravitou em torno de Murilo Rubião na fase “heroica” do Suplemento Literário. Mas que desatino? Que rapaziada? O título cita a referência de um intelectual do início do século XX ao grupo formado por Drummond, Emílio Moura, Abgar Renault e outros moços mais ou menos identificados com a introdução do Modernismo naquela Belo Horizonte em que nada havia para fazer, exceto, como os personagens de O amanuense Belmiro (1937), romance de Cyro dos Anjos, tomar chope no bar do Parque Municipal. E, na falta do que fazer, o moço Drummond saiu-se com o temerário passatempo de caminhar sobre o arco de um viaduto, a 17 metros do solo.
Alguns integrantes desses grupos de escritores saíram do jornalismo e da literatura para a política. Milton Campos, por exemplo, seria governador do Estado; Autran Dourado, ghost writer do presidente Juscelino Kubitschek. Um dos mais citados no livro, Otto Lara Resende protagoniza esta passagem singular: quando Walter Clark, alto diretor da Rede Globo, resolveu sair da emissora, em 1977, coube ao escritor nascido em São João del Rei escrever não só o pedido de demissão, mas também a polida resposta de Roberto Marinho aceitando-o. Um poeta ou ficcionista era, naquela época, necessariamente factotum intelectual.
Melhor do que referir é simplesmente transcrever, como amostras do estilo cativante de Werneck, estes dois trechos:
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À noite, o Maletta se multiplicava em cantos escuros, na sobreloja ou em fundos de
corredor, dos quais escorria música ao vivo. Num desses mocós, o Sagarana, o violão e
a voz de um rapaz que, nos fins de semana, metia um terno azul-marinho e ia cantar de
crooner em bailes formais: Bituca, apelido de Milton Nascimento. Drogas não havia –
no máximo, “bolinhas”, comprimidos que se tomavam com álcool. Fumar maconha era
coisa de terreiro de macumba, tão estrangeira para a classe média que a mãe de um jovem
músico em vias de se mudar para o Rio confidenciou aos amigos do filho a sua
preocupação: “Soube que, lá, os rapazes tomam copos e copos de maconha!”
(…)
O culto do texto, no Jornal da Tarde, chegaria a extremos ensandecedores. A
informação exata não tinha tanta importância, contava mais a forma – a ponto de uma cobertura
esportiva, certo dia, ter enchido toda uma página com mil filigranas estilísticas, mas sem
qualquer indicação que permitisse ao leitor saber quanto tinha sido o jogo.
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Por essas passagens, é possível perceber: O desatino da rapaziada, compõe-se de uma enfiada de casos exemplares, muitas vezes divertidos, a respeito da simbiose que houve, por mais de meio século, entre o jornalismo praticado em Belo Horizonte e as obras de autores tão diversos e importantes como Drummond, Cyro dos Anjos, Fernando Sabino e Ivan Ângelo – este o autor daquele que alguns consideram o melhor romance brasileiro da década de 1970, A festa (1976) – e inclua-se no rol o resenhista.
Para justificar, ao menos em parte, o “Minas Gerais” do subtítulo, vale anotar que Humberto Werneck, quando lhe foi possível, mencionou umas poucas ocorrências jornalísticas e literárias em outras cidades mineiras que não a capital. De Cataguases, por conta da revista Verde, ele faz um rápido perfil do espantoso Rosário Fusco, romancista de O agressor (1943): entre outras façanhas não propriamente literárias, Fusco bateu os recordes casamentícios de Oswald de Andrade (seis) e Vinicius de Morais (nove), mas, por cima disso, casou-se sete vezes, em diferentes religiões, com a mesma mulher: a francesa Annie Petijean, que lhe deu o último de seus seis filhos, sendo os cinco outros cada um de uma companheira diferente.
A gente nunca sabe aonde vão as aventuras lítero-jornalísticas conduzidas pela fluência narrativa do cronista, e isso é um dos encantos do livro. No final das contas, não será descabido considerar O desatino da rapaziada um romance repleto de personagens reais, tão diversas e surpreendentes quanto permitia a discutida e discutível – hoje, mais do que nunca – coincidência entre uma produção crescentemente industrializada de informações e a gestação de algo tão inescapavelmente artesanal como a literatura de qualidade.
Guimarães Rosa, que entra no livro meio como Pilatos no Credo, ou como aquele J. Pinto Fernandes do poema drummondiano, pois nunca foi de frequentar redações, ainda aparece na última das imagens de um suplemento fotográfico intitulado “Retratos na parede”. Foto que mostra o autor de Grande sertão: veredas (1956) ao lado de amigos no Pico do Curral, em BH, ainda nos tempos em que estudava Medicina.
Título: O Desatino da Rapaziada
Autor: Humberto Werneck
Gênero: Romance
Ano da edição: 2012
ISBN: 9788535921267
Selo: Companhia das Letras