Em certo sentido, toda autobiografia é precoce, exceto a de Brás Cubas, que escreveu depois de morto. Enquanto a vida existe, ao menos em teoria é sempre possível a descoberta de um novo sentido para si e para o mundo. Assim, o título desse livro de Patrícia Galvão (1910-1962) é um pleonasmo, assim como o título idêntico dado pelo poeta russo Evgeni Evuchenko a sua obra publicada em 1963, quando ele tinha 30 anos. A escritora paulista, que assinou seus escritos com 12 pseudônimos, tinha a mesma idade quando produziu Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão, somente publicado em 2005, e sem o enxugamento do título feito na edição mais recente.
Embora Pagu tivesse notáveis qualidades como ficcionista, no caso a validade da republicação será maior para quem queira refletir política ou psicanaliticamente. É que sobressaem, em sua narrativa apressada e cheia de lacunas, dois aspectos: o nunca superado trauma da menina violentada aos doze anos por um homem casado e a decepção da militante comunista que, ao chegar à União Soviética dominada pela propaganda e pelo terror stalinista, constata que a revolução proletária (à qual se havia dedicado fanaticamente por alguns anos) se havia transformado em enorme mentira.
As pessoas reais postas em ação nessas memórias, a começar pela própria narradora, são em geral sujeitas a atitudes inesperadas e surpreendentes, como se a autora fosse uma espécie de Dostoiévski mais raso e menos prolixo. Mas a concisão, que em Parque Industrial (1933) é virtude, agora aparece como sintoma do estado de espírito de Pagu, marcado por um cansaço que pode ter a ver com muitas causas, inclusive o consumo de ópio no período que ela passou na China em sua longa viagem de navio a caminho do país dos sovietes.
Recordando sua atribulada juventude, a escritora se atribui retroativamente um turbilhão de sentimentos paradoxais. Não tendo obtido racionalização compreensível desse período, ela transmite um testemunho semelhante ao dos místicos que se referem aos tempos anteriores à conversão, quando imaginam ter vivido nas trevas. Transparece, em meio à confusão das recordações, uma incessante busca de sentido da parte de quem viveu, desde a época em que brincava com bonecas, a eclosão incompreensível de uma feminilidade sem objeto amoroso. A grande beleza de Pagu parece ter sido também uma terrível maldição: todos os homens, o tempo todo, não pensam em outra coisa – ao menos na fantasia da narradora – senão em fornicá-la.
Todos menos Oswald de Andrade, que a engravidou e com ela se casou. Depois de haver possuído o corpo da mulher, nunca mais demonstrou por ela o mesmo interesse. E Pagu se refere ao escritor, que ao menos lhe deu alguns rumos provisórios pela vida afora, com asco pelo que ela depõe ter sido o comportamento de um sátiro “colecionador de sexos”. É preciso recordar, porém, que o livro foi escrito como uma longa carta ao último companheiro de Pagu, o também escritor Geraldo Ferraz, na tentativa de esclarecê-lo sobre a complicada vida pregressa da artista e militante. Ela parece seguir o exemplo de Oswald, sem dúvida a maior figura do livro: uma sinceridade até cruel, de tão completa – mas… quem garante? Não esqueçamos que o livro é um prato cheio para a leitura psicanalítica.
Quando Pagu ingressa no Partido Comunista, enfim descobre um sentido para existir. Um sentido verdadeiramente religioso, como exigia a doutrina oficial nos tempos de Stálin. É a admiração por Prestes, numa visita feita a Buenos Aires a serviço do Partido, que encoraja aquela moça meio atordoada pelos efeitos da própria beleza a estudar seriamente. De passagem, num encontro com intelectuais argentinos, ela nos transmite uma imagem nada lisonjeira de Jorge Luis Borges e companheiros da elite modernista portenha, pois “minha ignorância era muito exigente”.
A adesão à luta revolucionária é descrita como marcada pelo ardor verdadeiramente místico. Existe certa ironia em passagens desse tipo, pois o livro foi escrito depois que Pagu se decepcionou com a União Soviética, sobretudo depois de presenciar uma criança mutilada pedindo esmolas em plena capital russa. Daí por diante, oscilando entre o apego ao filho Rudá, tido com Oswald, e a dedicação apostólica ao Partido, a vida da autora é um romance condensando em poucas páginas (cerca de 80). Ou melhor, é quase um romance, pois aparentemente a crise interior vivida no período em que o livro foi escrito impede Pagu de se concentrar na elaboração das cenas e descrições, ficando quase tudo no esboço.
Aceitando “proletarizar-se” para conquistar a confiança dos dignitários do PCB, ela vai trabalhar como metalúrgica no Rio de Janeiro e, embora protestando altivamente contra tal diretriz, concorda em prostituir-se para conseguir documentos que, afinal, revelam-se de pouca ou nenhuma valia. No fim de tudo, prevalece a desconfiança dos líderes revolucionários – que eram, pasme-se, intelectuais – contra a militante pequeno-burguesa a quem não se poderiam atribuir tarefas realmente importantes. Desconfiança que parece ter muito a ver com a circunstância de que Pagu, mais uma vez, estar tentando restabelecer a vida em comum com Oswald, o qual – entre outras providências – desbaratava sua herança para comparecer com dinheiro e apoio moral sempre que a mãe de seu filho precisava. Mais um tópico psicológico interessante: Oswald sai do livro bem maior do que nele entrou, enquanto a narradora, efeito talvez de o ter imitado na sinceridade, tem sua estatura moral bastante encolhida.
As últimas 20 páginas poderiam ser a melhor parte do livro, pois tratam da viagem à Rússia. Viagem que tem no caminho a costa brasileira em direção ao hemisfério norte e cidades dos Estados Unidos e do Japão. Nesse percurso é que Pagu reencontra o poeta Raul Bopp, autor do injustamente esquecido poema Cobra Norato (1931) e do apelido que a celebrizou. Na época da Semana de Arte Moderna (1922), Bopp também tentara beijá-la, mas agora se apresenta como um amigo providencial naquele recanto do mundo onde ela só encontrava desconhecidos que falavam línguas incompreensíveis – pois Pagu não dominava o inglês, muito menos o japonês.
As anotações sobre a viagem são muito esquemáticas, e pouco ficamos sabendo sobre o encontro da autora com Nehru, futuro primeiro-ministro da Índia, e o mais de sua estada na China, de que ela transmite quase nada além da notícia de seu desânimo, contrastado pela empolgação verdadeiramente pentecostal da entrada na Rússia e da viagem rumo a Moscou num trem da lendária ferrovia Transiberiana. Na capital soviética, ela relata “vertigens histéricas junto ao túmulo de Lênin”, ápice das emoções que consistiam em constatar que “aquilo” – ou seja, a Revolução de que os comunistas brasileiros falavam como do Reino dos Céus – de fato existia.
A explicação do guia destacado para acompanha-la em Moscou soa estranhamente familiar a um brasileiro dos dias de hoje: aquela criança pedindo esmola representava um contingente de “vagabundos que não querem trabalhar e fazem sabotagem à construção do socialismo”. E Pagu deixa Moscou num dia de parada militar no qual resplandece, rodeado por uma entusiasmada juventude em desfile, o “líder supremo da revolução”, Stálin.
Título: Paixão Pagu – A Autobiografia Precoce de Patrícia Galvão
Autor: Patrícia Galvão
Gênero: Biografia
Ano da edição: 2005
ISBN: 9788522006571
Selo: Editora Agir