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"A educação sentimental do menino de engenho", por Eloésio Paulo | Jornal UNIFAL-MG

“A educação sentimental do menino de engenho”, por Eloésio Paulo


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José Lins do Rego pode não ser o maior artífice da palavra – difícil arrebatar o título de Graciliano Ramos –, mas figura entre os melhores contadores de histórias da geração saída do Congresso Regionalista do Recife (1926). Seu texto é poroso e fluente, daqueles de que o leitor, uma vez aberto o livro, dificilmente consegue se desenfeitiçar. E Doidinho (1933), continuação do admirável Menino de engenho (1932), é um dos melhores exemplos dessa qualidade.

O romance, como seu antecessor e como boa parte da ficção do autor, tem forte marca autobiográfica. Uma excelente contraprova disso é ler as assumidas memórias de Zé Lins, como era chamado pelos amigos, o também saboroso Meus verdes anos (1956), cujas coincidências com o romance de estreia do escritor paraibano são abundantes.

Doidinho também é, em parte, a reescritura do clássico O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, com o qual, porém, tem a notabilíssima diferença de não ser impregnado daquela retórica que algum crítico apelidou de “potência verbal”. Nem por isso o estilo do romancista paraibano é impotente; pelo contrário, sua alta legibilidade o descandidata ao relativo esquecimento (injusto, mas explicável) a que o romance do escritor carioca tem sido relegado, justamente por seu estilo palavroso.

Como em O Ateneu, já na primeira cena do romance o menino mal saído da infância é jogado no mundo cruel do colégio interno, sentindo isso como uma violência contra sua sensibilidade formada no ambiente que Pompeia chamou “estufa de carinho que é o regime do amor doméstico”. Carlos de Melo, continuando a narração de sua vida no engenho de cana do avô, cujas delícias haviam sido interrompidas traumaticamente pela tragédia familiar, logo nos dá conta de que seus dias no colégio seriam difíceis de suportar.

A escola é regida pelo velho professor Maciel, um déspota do mesmo calibre que o Aristarco de Pompeia: vaidoso de sua pedagogia da palmatória, inflexível no sadismo de castigar os menores deslizes de seus alunos. Ninguém diz a Carlinhos na primeira linha, como em O Ateneu, aquele “Vais encontrar o mundo” que resume o choque à espera do menino superprotegido, de chofre posto em contato com a lei do mais forte. Seu conhecimento anterior dessa lei, muito suavizado na infância sob as asas do avô, o poderoso Coronel José Paulino, idealizado na ficção de Zé Lins como uma espécie de benigno senhor feudal – apesar de, como qualquer potentado nordestino daqueles tempos e de outros, ser um exemplar “pai de chiqueiro” a fabricar filhos às dúzias sobre moças pobres, a maioria filhas e netas de escravos, as quais viviam em seus domínios num regime ainda medieval de servidão.

Diferença grande, pesando a favor do autor paraibano, é que já na primeira página de Doidinho o leitor começa a ver a história se passando quase como um filme, toda diálogos e ação.

O apelido, dado pelos colegas ao narrador logo no início, é devido ao “meu nervoso, a minha impaciência mórbida de não parar em um lugar, de fazer tudo às carreiras, os meus recolhimentos, os meus choros inexplicáveis”; em resumo, ao comportamento de passarinho do mato de repente fechado na gaiola. Porque o colégio Nossa Senhora do Carmo, que pouco tinha de religioso além do nome, é logo percebido pelo menino como um presídio.

Carlos de Melo, como costuma ocorrer em narrativas ambientadas nesses espaços que por Erving Goffman batizou de “instituições totais”, logo é obrigado a integrar-se numa rede de micropoderes onde os apelidos dizem muito sobre o papel social atribuído a cada menino. O nome de família é, amiúde, substituído alcunhas como Papa-Figo (do pobre Aurélio, “enfermidade ambulante”), Pão-Duro, Coruja. Quaisquer diferenças de classe social ou condição física, porém, são eliminadas quando se trata da sujeição à verticalidade do poder de Maciel, que no entanto é capaz de tirar, num período em que a escola fica praticamente vazia, férias de seu despotismo. Maciel também tem uma mulher condescendente com os internos, a qual, porém, fica muito aquém da receptividade erótica de Dona Emma, a consorte de Aristarco.

Ao longo dos episódios narrados pelo protagonista, vai-se compondo uma imagem inteira e coerente do colégio, onde a delação é estimulada e onde chega  a ser considerado escandaloso, pasme-se!, ofertar a uma mocinha a estampa da Virgem Maria com uma inocente dedicatória. Sim, porque ficamos sabendo, embora um pouco tardiamente (já no capítulo sétimo), que havia garotas na escola; não internas, como os meninos, mas figurando bastante nas vidas destes para as tornar um pouco menos amargas. Entre todas, destaca-se Maria Luísa, por quem logo Carlinhos se apaixona, substituindo com vantagem a relação afetiva anteriormente estabelecida com o colega apelidado Coruja. Relação, fique esclarecido, sem nenhuma conotação homossexual, embora, obviamente, o homossexualismo ocorra no enredo, assim como a masturbação.

Sair de vez em quando da escola é o grande prêmio para seus condenados. Assim, os banhos de rio e as raras idas ao cinema são dos poucos refrigérios com que podem contar os internos. De passagem, registre-se que os meninos tinham direito a apenas dois banhos por semana, isso numa cidade, Itabaiana, situada no meio do calorão nordestino.

Num desses episódios de libertação, Carlinhos passa férias no engenho do avô. É então que começa a reaprender as proporções de seu mundo infantil, incluindo a estatura do avô, que lhe ocupava na alma um lugar de verdadeiro ídolo. Surge no espírito do rapazinho um princípio de consciência social, o que o leva a se referir ao Coronel como “suserano”.

O pai de Carlos de Melo, já o sabia o leitor de Menino de engenho, havia assassinado a própria mulher e por isso estava internado num hospício. Essa condição de duplamente órfão, é claro, influi bastante na psicologia do garoto e talvez explique por que, em determinada passagem, ele se identifica com o tirano Maciel, apesar do ódio que lhe devotava. A simplicidade aparente do estilo de Zé Lins, por vezes sujeita a resvalar em imperícias como “medo medonho”, causa a surpresa de fazer o leitor deparar com algumas desconcertantes sutilezas. Afinal, estamos diante de um tipo de narrativa que, desde Flaubert, ficou capitulado como romance de “educação sentimental”.

O retorno ao engenho também acentua as recordações do idílio que fora a infância do menino, e naturalmente leitores excessivamente urbanos terão dificuldade para entender arroubos líricos como a evocação do leite a “cantar no fundo da vasilha”. E talvez desagrade a muitos o final aberto de Doidinho, mas ele tem explicação: a obra terá sua continuidade em Banguê (1934), que consolida o veio principal da ficção de Zé Lins em torno do “ciclo da cana”, com desdobramentos em Usina (1936) e Fogo morto (1943).

Onde encontrar: livrarias e sebos

 

Título do livro: “Doidinho”
Gênero: Romance
Ano: 1933

 

 

 

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