A fé possível aos ateus

Atualizado em 20 de julho de 2024 às 10:13

Era uma vez um santo comunista. Ainda jovem, deixou de lado as promessas de uma profissão na época rendosa, a odontologia, e dedicou-se de corpo e alma ao jornalismo num periódico mantido por militantes que consideravam o socialismo albanês um bom modelo. Era uma fé questionável como qualquer outra, mas esse rapaz sacrificou seus melhores anos de vida, com toda a sinceridade, à causa comunista. Viveu em São Paulo ganhando um salário ínfimo, de recebimento nem sempre garantido. Embora herdeiro de algum patrimônio, possuía pouco mais que a roupa do corpo, qual um São Francisco cujo Cristo fosse o camarada Enver Hodxa, uma espécie de Stálin dos Cárpatos. Desse bom homem, que hoje acredita em Deus, você podia discordar em quase tudo – menos quanto à sinceridade apostólica de suas convicções.

Perdoe o nariz-de-cera, leitor, mas referir um antigo e ausente, mas nem por isso menos admirado amigo foi o jeito que este resenhista achou de introduzir seu comentário do livro Em que creem os que não creem (1999). Esse interessante volume resultou de uma troca de correspondência promovida, em meados da década de 1990, pela revista italiana liberal (sic), entre o escritor Umberto Eco e o cardeal Carlo Maria Martini. A ideia era colocar em diálogo os dois intelectuais ilustres a fim de que refletissem sobre as possiblidades de uma ética humanista não sustentada pela fé. De lá para cá, o mundo mudou muito, mas a questão filosófica só cresceu, na mesma proporção do número de ateus (como Eco) e da legião dos tributários (ao contrário de Martini) de uma fé totalmente superficial, apoiada mais no hábito de consumir informação factual e estética sem lastro do que numa vivência interior e profunda do sentimento religioso.

A provocação partiu do autor do belo romance O nome da Rosa (1980), um sucesso editorial planetário que logo resultou – ocorrência bem rara – no filme ainda melhor, dirigido por Jean-Jacques Annaud e estrelado por Sean Connery. Eco, um dos mais importantes intelectuais europeus no final do século XX, começa dirigindo-se ao cardeal para lembrar, entre outros fatos relevantes, que o cristianismo inventou o que conhecemos por História. Ele desenha um cenário pré-apocalíptico (imagine-se como o faria hoje) para introduzir a pergunta que resume seu ponto de vista: “Que função crítica pode assumir um pensamento do fim que não implique desinteresse pelo futuro, mas sim um julgamento constante dos erros” de um passado repleto de “flamejantes holocaustos”?

Quatro intervenções de cada autor compõem a conversa. Talvez as respostas de Martini não possam ser mais bem sintetizadas do que no subtítulo de uma de suas cartas ao escritor (naquele tempo, as pessoas escreviam cartas): “A Igreja não satisfaz expectativas, celebra mistérios”. É claro que o ateu e o doutor da Igreja não chegarão a um acordo, mas o debate não perdeu sua atualidade; afinal, a decadência do racionalismo no interior do pensamento católico deve ter sido bastante responsável pela enorme perda de espaço, especialmente no Brasil, para credos que se aparentam mais arraigados num moralismo primitivo que cheira a Antigo Testamento, ao passo que os enormes problemas éticos multiplicados pelo mundo contemporâneo tornaram a fé algo um tanto obsoleto – se consideradas as necessidades práticas de todo indivíduo no cotidiano das sociedades ditas “pós-industriais” (porém marcadas, mais do que tudo, pela industrialização das consciências).

É um rico debate, como costumam ser aqueles em que o acordo é virtualmente impossível. Desde que, é claro, os contendores sejam respeitosos e inteligentes. A certa altura da conversa, o cardeal inverte a principal questão proposta por Umberto Eco. Este estava interessado, desde o princípio, em como seria possível uma ética não lastreada pelo recurso a qualquer noção de Absoluto: “que razões dão para seu agir”, pergunta Martini, “aqueles que pretendem afirmar e professar princípios morais que podem exigir o sacrifício da vida, mas não reconhecem um Deus pessoal?”.

Pertinente indagação, mas que reduz Deus a um princípio lógico. Uma discussão nesses termos, é claro, não poderia deixar de ser sinuosa, mas talvez o leitor reconheça que a proposta de Umberto Eco em sua última carta é a página mais bonita do livro. Vale a pena citá-la um pouco mais extensamente:

Procure (…), para o bem da discussão e do confronto em que acredita, aceitar, mesmo que
por um só instante, a hipótese de que Deus não exista: que o homem, por um erro
desajeitado do acaso, tenha surgido na Terra entregue à sua condição de mortal e, como se
não bastasse, condenado a ter consciência disso e, portanto, que seja imperfeitíssimo entre
os animais (…). Este homem, para encontrar coragem para esperar a morte, tornou-se
forçosamente um animal religioso, aspirando construir narrativas capazes de fornecer-lhe
uma explicação e um modelo, uma imagem exemplar. (…) E entre tantas que consegue
imaginar – algumas fulgurantes, outras terríveis, outras ainda pateticamente
consoladoras – chegando à plenitude dos tempos, tem, em um momento determinado,
a força religiosa, moral e poética de conceber o modelo do Cristo, do amor universal,
do perdão aos inimigos, da vida oferta em holocausto pela salvação do outro.

Dificilmente um religioso terá formulado definição mais generosa do cristianismo. E ela vem de um ateu, é bom que se repita.

O livro contém, depois das quatro intervenções iniciais de cada debatedor, um suplemento composto por comentários de outros intelectuais italianos. Dois deles, talvez encantados com o “pós-moderno” que se anunciava, na época, como grande promessa teórica, apresentam teses otimistas quanto à capacidade humana de fundar uma ética em mecanismos autorregulatórios do mercado, da tecnologia ou de outros desuses substitutos. Outro se expressa no estilo críptico e arrevesado que caracteriza muitos cultores da moda teórica francesa criada pelo Maio de 68; um quarto declara a falência do pensamento humanista; um, ainda, defende o cristianismo como o maior humanismo possível e propõe, como solução para a crise de valores discutida no volume, um novo Iluminismo pautado por valores cristãos.

Retornando para a conclusão – Umberto Eco parece ter-se recusado a participar dessa etapa –, o cardeal Martini (citando a Antígona, o que diz muito sobre o arsenal intelectual dos príncipes de Igreja naquela época) refuta algumas críticas recebidas dos comentadores e, formulando uma última tentativa de síntese, remete o livro a seu princípio:

Em que crê quem não crê? É preciso pelo menos crer na vida, em uma promessa de
vida para os jovens, não raro enganados por uma cultura que os convida, pretextando
liberdade, a todo tipo de experiência que pode concluir-se em derrota, desespero, morte,
dor. Faz pensar o fato de que em muitas intervenções esteja ausente a interrogação sobre
o enigma do mal; e isto só se acentua na medida em que podemos considerar que vivemos
em uma época que conheceu as mais terríveis manifestações da maldade. Um certo clima
de otimismo fácil, segundo o qual as coisas se arranjam mais ou menos sozinhas, não
apenas mascara a dramaticidade da presença do mal, mas apaga também o sentido de que
a vida moral é luta, combate, tensão agonística; de que a paz só se alcança ao preço
do dilaceramento sofrido e superado.

Título: Em que creem os que não creem?
Autor: Umberto Eco e Carlo Maria Martini
Tradução: Eliana Aguiar
Gênero: Filosofia | Ensaios
Ano da edição: 1999
ISBN: 978-85-01-05527-9
Selo: Record


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas.

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