Dona de um estilo fluente e correto, a gaúcha Cíntia Moscovich merece os vários prêmios que sua obra lhe tem trazido. Seus méritos estão bem representados na coletânea de contos Anotações durante o incêndio (2006), que, talvez por isso mesmo, não foi nenhum sucesso estrondoso de vendas. A qualidade, decididamente, está cada dia mais fora de moda na cultura brasileira.
O livro é composto por duas séries de narrativas, intituladas “A fumaça” e “O fogo”, numa amarração que parece remeter ao provérbio “Onde há fumaça, há fogo”. Mas não ficam muito evidentes, e isso importa pouco, os elementos ficcionais coesivos dessa amarração. Cada conto pode ser lido sem preocupação com o que teria a ver com a suposta totalidade, e eles não passam, na maioria, de dez páginas.
Há algumas recorrências que saltam aos olhos, como o fato de o aluno de gramática, no último texto, ter os mesmos olhos verdes do garotão argentino de “A grande e invisível África”, ao passo que sua professora de Português tem um “sentimento tépido” idêntico ao da jovenzinha lá do outro conto. Talvez seja possível uma leitura em que cada conto da primeira parte corresponda a outro da segunda, mas, de novo, tal possibilidade é assunto para estudiosos de cabala teórica.
Cíntia Moscovich faz muito bem o trabalho de contista, que consiste em tomar um relato em seu momento decisivo e nos conduzir, com passos bem medidos, ao desfecho. Os temas de Anotações durante o incêndio giram, o mais das vezes, em torno de personagens femininas às voltas com as surpresas da vida. Ocasionalmente, a escritora se coloca na pele de um homem, caso de “Invierno porteño”, título que cita uma composição de Astor Piazzolla; a história se passa em Buenos Aires, e seu narrador vive um surpreendente e rapidíssimo caso de amor com uma mulher que lhe surge do nada, no meio da rua e na véspera de seu voo de retorno ao Brasil.
O mais cativante dos contos é “O homem que voltou ao frio”. Também esse título se refere a uma obra alheia, o romance O espião que veio do frio (1963), de John Le Carré, que alguns consideram a melhor de todas as histórias de espionagem. O enredo dá conta de uma garota que, pouco depois de voltar do trabalho voluntário feito num kibutz (obviamente, em Israel), surpreende-se com a notícia de que teria de hospedar um rapaz conhecido lá, feio e finlandês, cuja presença em Porto Alegre acaba transtornando a vidinha de sua família judia de classe média alta. Nesse texto, mais do que em qualquer outro, a escritora demonstra as sutilezas de seu domínio da técnica ficcional.
Por sinal, não é o único em que Cíntia Moscovich tematiza sua identidade judaica. Isso também ocorre em “A fome e a vontade de comer”, cuja protagonista é Ana, outra moça porto-alegrense, que proporciona a redenção econômica a sua família endividada por meio de receitas culinárias com que sonha, tudo relacionado a sua própria inapetência que inicialmente é um problema tão grande quanto a pobreza dos seus. Essa já é uma história menos densa, quase merecendo mais ser classificada de crônica e tendo uma medula narrativa quase reduzida à anedota. O tema judaico, trilha em que a escritora se mostra seguidora de Moacir Scliar, ainda retorna em “Aquilo que não principia nem acaba”, o penúltimo conto.
Apesar de o livro ter desníveis, ninguém poderá negar que o universo ficcional da autora é rico. Suas variações comportam, entre outros, um evidente diálogo com Clarice Lispector, sobretudo em “A paixão e a ratoeira”. Aqui, uma típica dona de casa porto-alegrense depara, no meio da noite, com um camundongo em sua sala; as emoções de estranhamento vividas pela surpresa de encontrar o pequeno ser são, em boa parte, decalcadas da epifania vivida pela protagonista de A paixão segundo G.H. (1964) a partir do confronto com uma barata no cubículo recém-desocupado por sua empregada doméstica.
Menos flagrante é a relação do primeiro conto da coletânea, “Amor, corte e costura”, com a mais surpreendente de todas as narrativas curtas de Clarice, “A legião estrangeira”. Apenas, ao que parece, Cíntia Moscovich inverteu a direção do vetor, sendo a criança vítima de um arranhão existencial (no caso, também físico), enquanto na história clariceana a pequena vizinha da narradora é quem mata um pintinho, provocando no leitor vertigem existencial das mais raras.
Em termos de estranheza, nada no livro da escritora gaúcha supera “Morte de mim”, cuja narradora fantasia uma relação lésbica com ninguém menos que a morte, personificada por aquela “mulher de olhos negros e úmidos, o corpo esguio, sem nenhum outro sobressalto além dos seios e das nádegas que se insinuavam sob a roupa escura”. Para falar uma vez mais em pares narrativos, essa Dona Morte se parece muito com Pérola, a dama buenairense que captura em sua teia sexual o narrador de “Infierno porteño”.
Tem-se aqui um pequeno bosquejo do livro, e fica faltando muita coisa. Anotações durante o incêndio é uma daquelas tantas reuniões de contos que se têm publicado no Brasil e que vale a pena conhecer. Em outras montras mais votadas, continuam em cartaz – via rápida para o lucro garantido – gordos romances raquíticos, raquíticos romances balofos e tremendos papos-furados cuja leitura confirma, em geral, aquilo que o leitor está careca de não saber.
Título: Anotações durante o incêndio
Autor: Cíntia Moscovich
Gênero: Coletânea/Contos
Ano da edição: 2006
ISBN-10: 8501075779
ISBN-13: 978-8501075772
Selo: Record