Por que falar de um livro apenas sofrível? – devem perguntar-se alguns leitores. E faz sentido perguntar. Mas há muitas motivações possíveis, e de saída podem ter certeza de que o sadismo não é uma delas. No que toca a O rei dos paus (1980), de Ewelson Soares Pinto, poderia ser o interesse pela “masculinidade frágil” do protagonista e narrador, sendo o sintagma aspeado um tópico de discussão que anda tão evidência. O resenhista, porém, não se sente nem de um nem de outro lado do guichê, além de ser pouco adepto de modismos.
Certos livros são representativos, embora ruins. Outros, embora ruins, têm seus aspectos positivos. E, a ser feita somente de livros realmente bons, a literatura de qualquer país se resumiria a bem poucos títulos, restando a espinhosa questão sobre a quem caberia a autoridade de os eleger.
Ewelson Soares Pinto, desembargador que se tornou nome de rua em São Paulo, escrevia muito bem, até por dever de ofício. Aventurou-se no romance desde o cartapácio (800 páginas!) Crônica do valente Parintins, publicado em 1976, e seguiu produzindo ficção pela vida afora. Suas qualidades como estilista, contudo, não lograram encontrar uma forma narrativa que lhes correspondesse, e assim em grande parte se perderam.
O “pau” figura no título em sua muito difundida acepção chula. Seu portador atende pelo apelido de Prego, devido ao produto fabricado na indústria de seu pai. Este, descendente de italianos e self made man, enriquece a cada novo dia em que não consegue estabelecer boas relações com seu único filho. Pudera, tudo é pretexto para que ameace “rachá-lo no meio”. Assim, logo se delineia um estereotipado conflito edipiano com ressonâncias bem longínquas da ditadura militar, a cujo “milagre econômico” também se devia o sucesso da fábrica de pregos.
O rapaz se apresenta, desde as primeiras páginas, como narcisista dos mais doentios. Encarrega-se de contar ao leitor que é o melhor em tudo: o mais inteligente, um craque no futebol e, na virada dos 16 anos, também o mais favorecido pelo calibre anatômico que lhe confere o título falocêntrico, antes ostentado por Iguinácio (sic), colega metido a inventor de uma geringonça destinada a exterminar os “feios”, vale dizer, os pobres. Curiosa essa fauna juvenil composta apenas de meninos ricos, entre os quais não figura nenhum homossexual.
Há uma progressão temporal feita de episódios esparsos, boa parte deles relacionados às três coroas de Prego. À medida que ele se aproxima da idade adulta, também se acelera o conflito com o pai, do qual, no entanto, permanece dependente, e sem economizar nas solicitações: quando ingressa na USP, onde cursará Ciências Sociais, extorque-lhe um fusca ao patriarca, ao passo que Enrico Dressano já anda meio desistente de “rachá-lo ao meio”, um pouco pelo fato de o timinho de várzea de Prego haver derrotado a equipe dos operários da fábrica. Como compensação ao fracasso no papel de pai, o industrial havia passado de um outrora cobiçado Opala ao Ford Galaxie, já distintivo da condição de milionário. Ao mesmo tempo, havia aderido ao espiritismo, um de muitos fatos inseridos no enredo e que não têm qualquer consequência importante no seu desenvolvimento. Outro exemplo é a informação de que Jane, uma das namoradas do narrador, havia “caído”, ou seja, capturada pela repressão da ditadura.
Prego não é, apesar da vantagem anatômica, tão bem-sucedido com as garotas. Inicialmente, passa do onanismo maníaco às relações ocasionais com Marinalva, moça de condição modesta que oferece seus favores sexuais apenas por gosto. Mais tarde, envolve-se com outras duas ou três, mas nenhuma delas o considera digno de um caso a sério, pelo que nosso herói regressa ao mesmo patamar erótico dos 14 anos.
No final das contas, incompatibilizado também com a universidade, onde ninguém lhe reconhece o gênio, ele se fecha em seu quarto e vai ficando cada vez mais concentrado no mundinho particular que vinha criando desde o princípio. Esse mundinho é feito de uma mitologia pessoal muito mal explicada – quase nada no livro é bem explicado – em que se fundem a identificação com três animais (coelho, gato e cobra) e a fixação com determinadas canções em voga no início dos anos 1970, em especial aquela Disparada de Geraldo Vandré que ficou célebre na gravação de Jair Rodrigues.
Descrever o enlouquecimento de um jovem problemático parece ter sido um dos objetivos do autor. No desfecho, Prego está evidentemente pirado. E acabou-se; fecham-se as cortinas, sem mais.
O drama tem lá sua graça, sobretudo para o leitor capaz de deter-se em trechos vazados numa prosa veloz e tangente à poesia – a influência de Oswald de Andrade é notável – como este:
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Desordenei-me e não cumpri o projeto de enumerar senão a esmo, por
associação, o que me aconteceu até o pico dos dezesseis anos. Passe a falta. Se
a minha cabeça estivesse arrumada aos nortes do padrão, não me teria tornado
afluente deste grande rio bloqueado que eles esperam venha a evaporar-se.
Mesmo porque já não há tantas fontes de que nasçam rios; e escasseiam os rios
que ainda correm para cá. A ilha agora somos nós, em confinamento; e lá, por
tão agrandada de nossa morte ficta, a antiga e a dapazchamada é já continente
com duzentas milhas de mar costeiro.
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Consciente de que tal estilo não é um primor de objetividade e clareza, Prego admite-se, a certa altura, “empolado e sentencioso”. Tal escrita alambicada, sob a luneta de estudiosos bem-dispostos, pode até ser que dê nas veredas onde se encontram textos surrealistas ou experimentos com o ritmo da fala como On the road (1957), de Jack Kerouac. O jorro verbal de O rei dos paus tem mesmo parentesco com a escrita automática.
Mas também as qualidades estilísticas do livro desandam, quase sempre, numa mistura afetada em que o repertório erudito do narrador se mescla com a gíria “descolada” de certa juventude transviada cuja rebeldia não tinha causa identificável ou alvo definido. Prego não passa de um rapazola mimado, ainda que capaz de – ao menos na sua versão dos fatos, a única que temos – humilhar seu dispendioso psicólogo, soterrando-o por uma pilha de arapucas lógicas dignas de algum sofista. Sua “sofrência” narcísica só poderia gerar o mimimi, e passe o aggiornamento linguístico, em que acaba consistindo a enjoativa autolouvação, sempre acompanhada de reproches a “este mundo, aquele mundo” que nunca poderá estar à altura da genialidade vista pelo narrador em si mesmo. Pura catarse romântica, só que recheada de palavrões.
Título: O Rei dos Paus
Autor: Ewelson Soares Pinto
Gênero: Romance
Ano da edição: 1985
Selo: Círculo do Livro