Ainda estou aqui (2024): A voz que a ditadura esforçou-se em silenciar

Atualizado em 9 de janeiro de 2025 às 13:58

Walter Salles retorna ao cinema nacional com um filme que transcende a narrativa tradicional ao explorar a dor silenciada e a resistência em tempos de ditadura militar no Brasil. Ainda Estou Aqui (2024) não é apenas um drama histórico; é um grito contido, um reflexo íntimo do impacto político sobre uma família privilegiada que, em meio à brutalidade do regime, perde seu direito mais básico: viver o luto.

(Fonte: O Globo, 2024)

A obra cinematográfica retrata a história de Eunice Paiva — esposa do ex-deputado federal Rubens Paiva — que, por sua vez, representa a história desditosa de tantas outras famílias brasileiras que (sobre)viveram a ditadura militar. O filme é situado durante o governo de Emílio Médici, que ocorre entre os anos de 1969 a 1974, onde Rubens Paiva sofre um sequestro militar, deixando para trás sua esposa e cinco filhos. A história é trazida através de uma adaptação do romance que leva mesmo título, do autor Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado.

Fernanda Torres e Selton Mello são responsáveis por dar vida ao casal Paiva de maneira impressionante. A conexão emocional com os personagens é mantida ao longo de todo o filme, graças à sutileza admirável do trabalho de ambos. Destaca-se especialmente a atuação de Fernanda Torres, que entrega uma atuação que transcende a técnica e adentra o território do inesquecível, explorando cada nuance de Eunice, uma mulher que se reconstrói a partir da devastação. Sua personagem vive um conflito interno, entre o papel de mãe, incapaz de revelar aos filhos pequenos a verdadeira situação, e o de esposa de Rubens, em uma busca constante por ele durante longos meses.

A fotografia de Adrian Tejido, sem dúvidas, constrói uma poética visual marcada por luzes e sombras que dividem os espaços e as emoções, traduzindo na imagem a fragmentação emocional da protagonista, Eunice. As câmeras oscilam entre o dinamismo de cenas que evocam a ameaça sempre presente e a quietude dos momentos em que a dor encontra refúgio no silêncio. O espectador é convidado a habitar essa dicotomia, a perceber o que se passa entre os olhares e os gestos que não podem ser plenamente capturados.

A trilha sonora é outro ponto alto, costurando as cenas com músicas que dialogam com o contexto histórico e emocional. Dentre as canções, “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo”, de Erasmo Carlos, surge nos momentos finais como um eco do que a narrativa construiu: uma viagem longa e árdua que exige ação. A letra, com versos como “Mas não vou ficar calado no conforto acomodado como tantos por aí”, sintetiza a mensagem política e humana do filme. É uma convocação à consciência, reforçando que, mesmo diante do caos, é preciso encontrar maneiras de seguir, lutar e resistir.

(Fonte: Aventuras na história, 2024)

Em adição, o diretor Walter Salles se mostra muito preciso ao retratar o contexto social e familiar de Rubens Paiva. Isso porque o diretor frequentava a residência do casal quando criança, possibilitando que recriasse a casa a partir de uma lembrança pessoal, possibilitando que a família emerja como o coração pulsante da narrativa. As imagens afetuosas das reuniões em torno da mesa, dos mergulhos na praia, das brincadeiras na rua de Marcelo, o filho mais novo — que futuramente transformaria essa história em literatura — e da cumplicidade entre os irmãos oferecem ao espectador um retrato profundamente humano. São momentos de ternura que, ao contrastar com o peso da tragédia, intensificam o impacto emocional do filme.

As memórias de alegria, prosperidade e companheirismo tomam conta do ambiente e da família de Rubens, até seu desaparecimento. A tensão da narrativa se intensifica principalmente porque acompanhamos a história através da perspectiva de Eunice, que não tinha conhecimento do motivo pelo qual seu marido teria sido levado pelos militares. Assim, o ponto de vista da personagem mergulha o telespectador em uma angústia real, experienciada por uma mãe de família e pelas crianças, que não tinham consciência da real situação do pai, vivenciando uma maré de suspeita e medo.

Os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega reivindicam o lugar do cinema brasileiro como espaço de resistência e lembrança, utilizando de silêncios repletos de sentimentos que permeiam todo o período da ditadura militar brasileira. Em uma época em que pouco era permitido dizer e fazer, a família de Eunice compartilha desse silenciamento fora e dentro de sua casa. Fernanda Torres, em entrevista recente para Fred Film Radio, explica o motivo desse silêncio avassalador através de um conselho que recebeu da mãe, Fernanda Montenegro – que também participa da produção. A atriz argumenta que Eunice enfrenta a tragédia pois não há espaço em sua vida para choros e lamentações, criando assim uma força marcante no olhar da personagem. Eunice cuida da casa, cria cinco filhos e procura por Rubens. Ou seja, as descontinuidades, cortes e silêncios da obra não são meras escolhas estéticas: são reflexos da resistência diante da desumanização.

(Fonte: Jornal Leopoldinense)

A narrativa, dessa maneira, se destaca por seu toque caloroso e também melancólico. Ainda que imersa na crueldade histórica, o filme encontra espaço para a ternura nas relações familiares, mostrando que o amor e a dor são indissociáveis. A direção de Salles equilibra essa intimidade com o pano de fundo político, criando uma experiência cinematográfica que reverbera além da tela. Assim, sob a perspectiva encantadora de uma família unida e forte, o filme Ainda estou aqui (2024) é capaz de surpreender o telespectador com tamanha violência já permitida dentro do cenário brasileiro, e tamanha coragem de famílias como a de Rubens Paiva. A produção revela, de forma visceral, a resistência silenciosa daqueles que, mesmo diante da repressão brutal da ditadura, se mantiveram firmes na busca pela verdade e pela justiça. O filme não apenas expõe o sofrimento, mas também honra a coragem de quem, através da dor, se recusou a se calar. É um grito abafado que ecoa a memória daqueles que, por amor e coragem, não foram vencidos.

Ao transitar entre o pessoal e o histórico, entre o vivido e o não vivido, essa obra cinematográfica encontra força em sua capacidade de dialogar com qualquer espectador. Seja brasileiro ou estrangeiro, todos podem reconhecer no silêncio as marcas de lutos que se espalham por gerações. Mais do que um filme, a obra é um legado, um lembrete de que até mesmo no caos há resistência, e na ausência, há memória.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AINDA estou aqui. Direção: Walter Salles. Produção: Walter Salles, Rodrigo Teixeira et al. Sony Pictures Motion Picture Group, 2024.Fred Film Radio. FRED’s Interview: Walter Salles and Fernanda Torres – AINDA ESTOU AQUI (I’M STILL HERE). Youtube, 1 de set. de 2024. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=xsbSvfje8i8>. Acesso em 20 de nov. de 2024.

Paratexto editorial Resenha Crítica, produzido no âmbito da disciplina “Introdução à Editoração”, ministrada pela professora Flaviane Faria Carvalho, em parceria com os projetos +Ciência (FAPEMIG/UNIFAL-MG) e Laboratório de Estudos Editoriais (PROEC/UNIFAL-MG).

Luanna da Costa Barbosa é graduanda do oitavo período do curso de Letras – Línguas Estrangeiras pela UNIFAL-MG, realiza pesquisa na área de tradução literária com enfoque na língua inglesa e é integrante do projeto de tradução do espanhol para o português. Fez parte do Núcleo de Idiomas da instituição, onde atuou como professora da rede Andifes – IsF. Além de suas pesquisas sobre tradução, também possui estudos na área de literatura e cinema.

Sarah Ayer Pereira é graduanda do oitavo período de Letras – Línguas Estrangeiras pela UNIFAL-MG. Atua como pesquisadora na área de literatura espanhola e crítica feminista, e é estagiária do Acervo da Produção Intelectual de Autoria Feminina dentro do site da universidade.

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