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As origens do “kafkiano”

Quando Franz Kafka tratou da publicação de seu primeiro livro – foram dois projetos de edição malogrados –, previu a reunião de seu primeiro conto importante, “O veredicto”, com a novela A metamorfose mais um terceiro texto. Este, na primeira tentativa editorial, era “O foguista”, e depois mudou para “Na colônia penal”. Como A metamorfose (1912) ganhou autonomia a ponto de tornar-se a obra mais conhecida de Kafka, “O veredicto” e “Na colônia penal” acabaram ficando sozinhos no volume afinal publicado, que delimita com clareza as duas principais linhas de força do que, ao longo do século XX, ficou conhecido como uma das mais insólitas obras de ficção já concebidas.

A melhor edição brasileira das obras de Kafka foi publicada primeiro pela editora Brasiliense, depois pela Companhia das Letras. O tradutor foi Modesto Carone, professor da UNICAMP e também ficcionista, um aplicado e profundo estudioso do universo kafkiano. No período em que transcorreu a curta vida de Kafka viveu (40 anos), a República Tcheca de hoje se chamava Boêmia e fazia parte do império Austro-Húngaro; como judeu assimilado, Kafka escreveu em alemão, a língua de cultura que poderia permitir a seus textos serem conhecidos por grande parte dos leitores da Europa Central.

“O veredito”, segundo o tradutor brasileiro, foi o texto que deu a Kafka a chave de sua maneira pessoal de conceber a ficção. De fato, essa narrativa curta contém uma espécie de deslocamento presente em tudo o que nos habituamos a chamar de kafkiano. Visto a posteriori, parece simples: está-se contando uma história bastante realista, mas em determinado ponto o registro muda e o tom do relato passam a ser a semântica e a sintaxe do sonho. Kafka simplesmente transpôs para sua narrativa o que deve ter aprendido ao ler A interpretação dos sonhos (1899) de Freud, livro que foi o estopim da teoria psicanalítica.

Georg Bendemann, um jovem comerciante, surge na primeira cena do conto pensando a respeito da carta que havia acabado de escrever a um amigo emigrado para a Rússia. Era a época da Revolução, e o tal amigo estava impedido de deixar seus negócios para visitar a terra natal. Bendemann tem com ele uma relação ambígua, tanto que havia hesitado em comunicar na carta seu recente noivado com Frieda Brandenfeld, “uma jovem de família bem situada” que projeta, sem margem de dúvida, aquela Felicia Bauer de quem o autor foi noivo duas vezes. O conto, por sinal, é dedicado a Felice.

Dessa cena inicial se passa à visita feita por Georg a seu pai, cujo quarto havia muito tempo não frequentava. Depois da morte da mãe, o filho havia encabeçado os negócios da família, fazendo-os prosperar muito. Sua ideia era comunicar ao pai que havia dado notícia do noivado ao amigo, e de início Georg pensa que o velho “ainda era um gigante”, mas logo em seguida constata, observando-o, sinais de fragilidade senil, e resolve cuidar melhor dele. É aí que o registro muda: o pai, inicialmente cordato, questiona se era verdade que Georg tinha o tal amigo na Rússia; a partir disso, dá-se um diálogo em que o velho fica tremendamente agressivo e faz ao filho terríveis acusações. No desfecho, emite uma condenação à morte que Georg, sem pensar, apressa-se por cumprir cometendo suicídio.

Obviamente, há mais Freud aqui. Falamos de um conflito edípico dos mais chapados, e Kafka realmente teve uma relação bem problemática com seu pai, que nunca reconheceu a legitimidade de sua opção pela literatura em detrimento do trabalho “sério”. E bem que o pobre Franz tentou ser um moço normal: primeiro trabalhou como advogado de uma seguradora, depois como funcionário público; mas ele era de fato um deslocado naquela civilização que, tendo produzido a guerra franco-prussiana, ia entrando em outro conflito de proporções catastróficas e (não era difícil imaginar) chocava o ovo de uma serpente que envenenaria o mundo inteiro na Segunda Guerra Mundial. Hoje é evidente para qualquer leitor: Kafka foi um visionário.

Em “Na colônia penal”, há uma espantosa antevisão – que claro, não poderia ser mais do que intuitiva – do horror nazista. É um conto bem mais longo, mas sua estrutura narrativa desautoriza chamá-lo de novela. Consiste, em sua maior parte, na cena em que um oficial militar apresenta ao “explorador” estrangeiro convidado por seu governo a máquina de tortura que imprime a sentença no corpo do condenado. O funcionamento do mecanismo vai ficando claro aos poucos, na mesma medida em que o leitor percebe as coordenadas políticas da cena: o “explorador”, aparentemente, havia sido convidado a fim de que constatasse a barbárie daquela prática, que o novo comandante – não sabemos exatamente de quê, mas certamente de uma organização militar – já boicotava e talvez pretendesse extinguir.

O oficial encarregado da máquina, pelo contrário, é um entusiasta fanático do tipo de punição que vai descrevendo em detalhes, ao mesmo tempo em que prepara a execução de uma sentença. Aqui a segunda linha de força da obra kafkiana: o problema judicial, já anunciado pelo título do primeiro conto e traduzido na sentença pronunciada pelo velho Bendemann contra o filho.

O mesmo oficial tem verdadeira veneração pelo antigo comandante, inventor da máquina de tortura. Ele acredita que, pouco antes de morrer, o condenado consegue ler com o próprio corpo o estranho diagrama em que consiste o texto de sua sentença. Ao referir-se a isso, descreve a sensação resultante desse entendimento como uma espécie de transe místico. Pouco antes do desfecho, tenta desesperadamente convencer o “explorador” a colaborar com seu plano de reabilitar a máquina torturadora perante as autoridades de sua ilha – situada nos trópicos, mas nunca nomeada. É normal esse texto causar certo mal-estar no leitor. Kafka jamais escreveu coisas fofas; antes, pratica a ironia por meio de situações extremamente tensas.

Juntas, as duas narrativas reunidas nesse magro volume são a melhor introdução à obra kafkiana. Depois de compreendê-las (sem perder o excelente e sintético prefácio do tradutor), ninguém se sentirá mais tão perdido quanto o autor destas linhas ao ler pela primeira vez, aos 15 anos, A metamorfose e O processo, sem dúvida os dois livros em que o escritor tcheco definitivamente estabeleceu seu nome entre os mais importantes da ficção do século XX, ao lado de James Joyce e Marcel Proust.

Título: O Veredicto/Na Colônia Penal
Autor: Franz Kafka
Tradução: Modesto Carone
Gênero: Contos | Clássicos
Ano da edição: 1998
ISBN: 978-85-7164-806-7
Selo: Companhia das Letras

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).

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