As razões do pileque

Um homem bebe cerveja no bar do Odilon (1978) é o título da coletânea de contos que projetou nacionalmente o nome de Jefferson Ribeiro de Andrade, natural de Paraguaçu, morto em 2013 aos 66 anos. O livro foi publicado pela Codecri, a editora do lendário jornal carioca Pasquim, onde o escritor trabalhou depois de uma temporada em Belo Horizonte, cidade na qual havia sido dono de bar e fundado sua própria editora, chamada Liberdade. Jefferson foi, vivendo na capital mineira, um expoente do que mais tarde ficou conhecido como “literatura marginal”, ou seja, feita à margem do mercado editorial e das conveniências de um tempo em que a ditadura militar chegava ao paroxismo de sua propaganda mentirosa e da repressão policial a qualquer esboço de oposição política ou cultural.

São sete os contos que compõem o livro. Em quase todos eles, um boteco é o cenário e a cerveja é o combustível da ação dramática. No mais longo deles, intitulado “A noite louca do Bard’os Poetas”, vários dramas se entrelaçam, no que talvez tenha sido pensado pelo autor como esboço de romance.

A ação do primeiro texto se reduz ao diálogo entre o dono do estabelecimento e alguns velhos boêmios que se reencontram depois de muito tempo, um deles tendo, ninguém explica por quê, ficado cego. A história termina quando o bar fecha suas portas; o tema visível à superfície é só a passagem do tempo, a chegada de todos àquele dia em que a alegria consiste apenas em recordar tempos supostamente felizes. A velha “saudade hipocryta” de Raul Pompeia.

No segundo conto, o narrador-personagem está mergulhado numa crise existencial deflagrada pelo fato de ter assistido ao vivo, na TV, à morte de um piloto de fórmula 1. O acidente funciona, para ele, mais ou menos como a barata no romance A paixão segundo G.H. (1963), de Clarice Lispector – é o estopim de uma problemática interior sem solução à vista. Como ninguém atribui ao fato a mesma importância que ele, o narrador vai-se isolando até chegar ao ponto de agredir a namorada, terminando sozinho. Claramente existe algo de errado no mundo, mas o quê?

“Flamengo” vem a seguir. É um episódio patético e com desfecho sarcástico. Talvez não tenha graça para leitores mais jovens, habituados a outro tipo de humor e até incapazes, na média, de entender como alguém poderia ter um time de futebol como razão de existir. O protagonista, enquanto se embebeda, vai ouvindo uma final de campeonato ao radinho de pilha e ficando crescentemente irritado com a mulher, que não dá a mínima para as desventuras da equipe rubro-negra na partida. No ápice do desespero e da bebedeira, o torcedor fanático também se torna violento, mas termina por dormir, sendo ao final ironizado pela mulher, pois não “sobrevivera” para gozar a reviravolta ocorrida no jogo que tanta irritação lhe causara.

O próximo é “Manquinho”, obra-prima da contística – a ponto de lembrar o genial “O enfermeiro”, de Machado de Assis. Um deficiente físico, desde criança humilhado por seu defeito e pela condição de pobreza, torna-se uma espécie de bobo-da-corte do “doutor” Raimundinho, que nele se vinga dos próprios recalques, advindos do fato de ser baixinho. O desfecho é a revanche do protagonista, proporcionada pelo acaso, mas que ele não deixa passar.

“A noite louca do Bard’os poetas” ocupa quase um terço do livro e é estruturado ao modo de uma peça de teatro. Comparecem ao boteco (uma evidente recriação daquele que o próprio autor manteve na capital mineira) personagens reais da cena cultural belo-horizontina da época, como os escritores Pascoal Motta e Antônio Barreto. Este, por sinal, é colocado no lugar de Jefferson como dono do estabelecimento. Os personagens chegados de fora são a marginalia de BH: uma mendiga, um travesti, um “índio” e um louco fugido do hospício. A conversa entre eles é uma cena de teatro do absurdo, com “deixas” para determinado personagem fazer críticas ao regime militar e falas que revelam, por exemplo, a estranha definição afetiva da mendiga – quem é o “amor da vida” do outro, é porque bate; quem ama, sempre apanha, e mais ama quanto mais apanha. No final, o louco é recapturado pela polícia e por um enfermeiro do manicômio, não antes de fazer um discurso reproduzindo literalmente falas de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart.

O penúltimo conto expõe a vida melancólica de um ferroviário que, por quase 37 anos, havia comprado um bilhete de loteria com o mesmo número. Sua história, na qual entra de carona um músico paraguaçuense chamado Raul, que se torna o imaginário autor da canção “O trem das sete”, de Raul Seixas, é pretexto para o narrador noticiar o assassinato de um jovem militante interiorano – fuzilado, por seu envolvimento em atividades clandestinas, pelo aparato policial da ditadura militar.

Fecha o volume o texto que lhe dá o título. Nele, um forasteiro chega de manhãzinha ao bar e, ao longo do dia, sem dizer nenhuma palavra além das necessárias para pedir a próxima cerveja, consome 39 garrafas da bebida até perto de meia-noite. O fato é um enigma para o dono do bar e seus amigos, promovendo o ato de embriagar-se solitariamente – até pelo exagero numérico dos vasilhames – a uma espécie de paródia do realismo fantástico. Além de transformar o conto numa obra conceitual, pois ele pode ser interpretado como paródia do ato de escrever.

Essas sete narrativas compõem um dos livros mais representativos da febre contística que se apossou dos escritores brasileiros em meados dos anos 1970, a ponto de Moacyr Scliar, em seu livro A balada do falso messias (1976), ter criado uma sátira do fenômeno. Elas fazem de Jefferson Ribeiro de Andrade, mesmo se deixarmos de lado o restante de sua obra, um autor emblemático do papel de combatentes contra a ditadura que foi assumido por significativa parte dos escritores brasileiros naquela década sombria.

Título: Um homem bebe cerveja no bar do Odilon
Autor: Jefferson Ribeiro de Andrade
Gênero: Literatura Brasileira | Contos
Ano da edição: 1978
Selo: Codecri


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

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