Clássico e maldito

A imagem é uma arte criada com um fundo escuro com as palavras "Montra por Eloésio Paulo" escritas no topo, em branco e azul. À esquerda, há a foto do colunista Eloésio Paulo, que é um homem de pele clara e cabelos grisalhos, usando uma camisa social bege, sorrindo para a câmera. Ao centro-direita, há a capa do livro. O título está escrito em letras grandes e decorativas no topo.

Fernando Fiorese, mineiro de Pirapetinga, certamente não é o primeiro poeta a flertar com a prosa, nem o primeiro prosador a experimentar os limites e possibilidades da poesia. Mas o hibridismo que ele se propõe plasmar em Romance dos desenganados do ouro & outras prosas (2024) resulta em obra das mais relevantes no contexto da poesia brasileira das últimas décadas, o mais das vezes tão sintonizada com um espírito coletivo radicalmente antipoético e desafinada em relação às lições essenciais da tradição.

O livro é, já a partir de seu título, um paradoxo ironicamente temperado. Afinal, em que sentido poderia ser um “romance”, se é composto de versos? Sem dúvida, no mesmo sentido daquele do português Almeida Garrett (Romanceiro, 1843) e do Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meirelles – este, uma das mais belas e coesas séries de poemas feitas no Brasil. O Romance dos desenganados… compõe-se de textos poético-narrativos reunidos por afinidades de tema e de tom. Mas as conexões entre os 18 segmentos que o formam estão a insinuar a noção mais comum do gênero: uma narrativa longa em prosa. Encontram-se nos mesmos versos o poeta de Corpo portátil (2002) e o ficcionista de Um chão de presas fáceis (2015).

Daí o subtítulo “& outras prosas”, que inverte o sentido da insinuação ao “desqualificar” os poemas nos quais, em essência, a obra consiste – pois ser chamado de prosaico não é das piores coisas que podem suceder a um poeta?  Fiorese, que coroa com esse livro uma densa e consistente carreira de escritor, sabe muito bem em que fio de navalha tem de se equilibrar, e parece divertir-se com isso.

Quanto ao tema, a expressão “desenganados do ouro” sintetiza a vida de duas ou três gerações de colonizadores da Zona da Mata mineira, ali pelas vizinhanças de Juiz de Fora, onde vive o poeta desde sua juventude. O povoamento daquela região se faz, nessa versão apoiada em ampla pesquisa histórica e larga erudição, do restolho humano vindo de áreas adjacentes onde a tentativa de extrair o metal precioso já não dava mais resultado. As várias histórias contadas nos poemas compõem um painel (talvez fosse melhor dizer: um móbile) da formação social da região: “Terra socialmente formada no Império”, diz Afonso Arinos numa das epígrafes, “depois do grande surto setecentista, com cafezais sem-fim, lavouras ricas, mas igrejas pobres, cidades monótonas, sem a comovente beleza barroca das outras”. A definição é resumida no dito popular da outra epígrafe: “Pai mineiro, filho cavaleiro, neto sapateiro.”

O desengano do ouro, portanto, diz respeito também aos descendentes dos pioneiros, que poderão apenas falar do “ouro verde” representado pelo café, sendo que a maioria deles nem participa de qualquer decadência econômica, pois já nasceu socialmente decaída. E são muitas, nos poemas, as referências aos horrores da escravidão, tanto dos africanos como dos índios puris, depois à semiescravidão dos imigrantes chegados da Itália.

Tudo isso é narrado em alta poesia. Fernando Fiorese é talvez o mais culto dos poetas de sua geração, capaz de expressar-se nas mais variadas formas, mas claramente preferindo o decassílabo e o redondilho maior. Seus mestres principais são Gregório de Matos, Camões e Carlos Drummond de Andrade – este logo mencionado no segundo poema, justamente o que dá título ao livro, por meio da expressão “dentaduras duplas”. O amálgama dessas três poéticas ilustres, cada qual clássica a sua maneira, resulta em versos de uma mestria que anda muito em falta, em meio à postulada dissolução de todo e qualquer critério para julgar o que seja poesia:

(…)
Meteram-se pelos Sertões Proibidos;
Levas de oleiros, pintores, ferreiros,
Putas, boticários e carniceiros,
A ver se achavam um qualquer arrimo
No oco exílio daquele mar de morros.

Sacrifica-se bastante da anterior imagética do poeta, tão rica e de ascendência surrealista, muriliana e cabralina, mas o tema pedia maior atenção à sintaxe e à sonoridade dos versos. Aqui o leitor não reconhecerá o mesmo Fiorese da mencionada reunião Corpo portátil, que enfeixa as duas décadas iniciais de sua produção poética; em compensação, encontrará relatos que compõem, por amostragem, uma História a que, no final, tirará o autor a inicial maiúscula. Mas isso, por enquanto, é outra história…

Os primeiros desenganados são Licurgo e Antônio dos Nove. O primeiro, proprietário de lavras mal-sucedidas, que as vende e parte em busca de melhor aplicação para o capital apurado; o segundo, um aventureiro que abandona a família e ganha o mundo. E não é que, reencontrando-se os dois lá adiante (um fora patrão do outro), dá-se de um Antônio já aprumado na vida buscar noiva e encontrar justamente Laura, a filha de Licurgo, que, mesmo já enfumaçado pelas fungíveis dignidades políticas do Império e pela renda de seus cafezais, precisa engolir a afronta de “entregar justo a caçula àquele merda”? Porém Laura, a teimosa moça, fica viúva ainda na viagem de núpcias, logo se casando outra vez, agora com um primo, escolhido, talvez, por apto a “engordar o seu pecúlio”.

Dessa abertura se desdobra uma colorida sequência de histórias, a compor, em traços rápidos, o painel da formação econômica e social da Zona da Mata. Também variados são os metros e formas poéticas, descendo dos dodecassílabos e da terza rima dantesca aos versos de seis e de quatro sílabas. Um conjunto marcado pela surpresa, pois nunca é possível imaginar para que lado ruma a viagem poético-histórica do autor. Em determinado ponto, o poema concentra-se em descrever a expectativa dos juiz-foranos pela visita de um missionário italiano de cômico (hoje, pelo menos) nome:

Em breve há de estar convosco para pregar o direito
E acusar os pregadores, para julgar o presente
E anunciar o futuro, sem alfaias nem patranhas.
De heresias e imundices, a cidade está doente,
Mas a cura vem na boca de Dom Luigi Lasagna.

Esse segmento se conclui com a reprodução, em fac-símile, da notícia publicada pelo jornal O Pharol, em novembro de 1895, sobre o acidente de trem que vitimou o missionário e vários outros passageiros.

Outra riqueza do livro está nos registros de linguagem, em que se misturam, conforme seja conveniente pelo tema e pela situação, desde o português castiço até expressões populares como “tomar nojo da sombra” de alguém. Os provérbios lusos fazem contraponto a citações em vários idiomas, porém sem pedantismo: colocadas onde se fazem necessárias. A têmpera, com frequência, resulta em redondilhos assim:

Não por falta de notícia
Abalizada e perita,
Mas graças muito à incúria
Ou às luzes de oitiva
(Quando não ambas as duas)
Dos doutores de Coimbra,

Dos bacharéis de Recife,
Foi que desandou na Mata
A lavoura do café.
Tanto que à memória basta
De Agassiz e Ribeyrolles
Trazer os nomes à baila

Para dar conta que o crash
Da bolsa de Nova York

Foi apenas o remate
(E não nego o seu importe)
De uma morte anunciada
Sem berliques nem berloques

Quando, lá pela metade do livro, a história desemboca numa Juiz de Fora a ensaiar, em finais do século XIX, os primeiros passos na direção de tornar-se “capital” da Zona da Mata, o poeta acentua o tom burlesco que já vinha sendo anunciado, aqui e ali, em muitos dos poemas. É que ridicularizar o inventado glamour da “Manchester Mineira” se revela, daí por diante, a principal meta do Romance. A paródia da história oficial culmina no penúltimo poema; ele é chamado, muito a propósito, “A História vista de baixo”, tradução do título de um artigo de Edward P. Thompson publicado em 1966 num jornal inglês.

Nos últimos poemas, esse tom de reescrita a contrapelo da História evidencia a intenção de ironizar o “herói civilizador” Heinrich Halfeld, que nomeia uma das principais ruas do centro de Juiz de Fora. No mesmo diapasão, o poeta recupera a memória de que uma das famílias mais importantes da cidade teve sua riqueza originada no tráfico negreiro e na criação de mulas. O livro há de desagradar a muita gente que prefira repousar sobre ledos enganos, mas já nasceu clássico – clássico e maldito.


Título: Romance dos Desenganados do Ouro & Outras Prosas
Autor: Fernando Fiorese
Gênero: Ficção
Ano da edição: 2024
ISBN-10: 6560250172
ISBN-13: ‎978-6560250178
Selo: Faria e Silva


Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.

As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas

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