Claudia Piñeiro: A cinematografia no relato

Sempre ouvimos falar que a literatura nos leva numa viagem para mundos novos e desconhecidos, que é uma porta para culturas diferentes, para novas experiências em outras latitudes. Isso é verdade. Mas é verdade também que a literatura pode nos transportar para um lugar familiar do território da memória, como o bairro da infância, uma árvore de Natal, ou até mesmo lugares que não quiséssemos lembrar. Esse é o caso de Claudia Piñeiro no seu livro Quién no (2018), uma recopilação de contos e relatos breves que não vai deixar você sem reação.

É a partir do título que é tecido o fio condutor desses relatos: Quem nunca? Partindo assim da base de que todos temos histórias, lembranças, fantasias ou pesadelos comuns, como anedotas familiares ou até vivências pessoais que ficaram gravadas com fogo na nossa memória. A temática é variada: desde a memória afetiva, pais tóxicos, rituais pessoais, infidelidades e divórcio, empatia, vingança, até suspense, terror, mistério e sangue (pingando… e outras vezes nem tanto).

Um homem egoísta realiza um ato generoso, um morto pode falar através de seus pertences, um homem solitário vive sua noite de amor da maneira mais absurda, um casal cria seu próprio inferno, um escritor famoso se esconde atrás de seu prestígio e, assim como eles, todos os protagonistas dessas histórias são confrontados por fantasmas mais ou menos reais.

Piñeiro nos apresenta relatos de situações cotidianas que parecem despretensiosos, mas que nos transportam para um lugar familiar com um curso ou trajeto inesperado. Alguns dos contos nos levam de volta para os cantos recônditos da memória, como na casa da infância, numa espécie de reivindicação com o passado e de diálogo constante com o presente, entre a memória afetiva dos nossos anos primeiros e seu reflexo com o hoje. Já outros contos relatam situações que poderíamos muito bem achar no título de uma manchete policial, mas narrados com um toque trágico-cómico; assim também como relatos de suspense e terror que nos fazem lembrar de Poe e Hitchcock.

Mas, um dos pontos mais altos da narrativa de Piñeiro é a sua relação com o cinema. Não é à toa que ela é também dramaturga e roteirista, contando com vários dos seus romances representados no telão, até recentemente em produções das plataformas digitais. Sim, em Quién no, é possível ‘ver’ a cena, como num cinema. Piñeiro consegue colocar o leitor dentro do quadro, olhando como uma testemunha escondida. Ela nos faz entrar na cotidianidade da personagem, no fluir das pequenas ações diárias dentro do túnel visual dos olhos da protagonista, sentir os aromas e a pele eriçando pelo estupor ou medo. Também, por meio da linguagem, consegue criar o cenário sombrio sem descrevê-lo, como quando no cinema as luzes, as cores e a música vão preparando o espectador para uma cena de suspense ou para o clímax epifânico.

Podemos ver esse ‘relato cinematográfico’ no conto Basura para las gallinas, que descreve um ritual tão básico como levar o saco do lixo para a rua, mas num constante close up, acompanhando o passo a passo do processo enquanto a personagem dialoga constantemente com a sua memória afetiva da vida no campo, com a sua avó, num relato despretensioso que oculta um final escabroso.

Ela põe a sacola de lado e lava as mãos. Abre a torneira, deixa a água correr enquanto enche as mãos com detergente. Quando era menina, não havia detergente em casa; usavam sabão branco, se pudessem. Agora ela tem detergente; traz o que compram em galões no trabalho, enche uma garrafa de refrigerante vazia e a guarda na mochila. Também não havia sacolas plásticas quando ela era menina; sua avó colocava todas as sobras que podiam ser usadas para fertilizar o solo ou alimentar as galinhas em um balde, e o que não podia, queimava atrás da cerca de arame na estrada de terra. No balde iam cascas de batata, caroços de maçã, alface podre, tomates maduros demais, cascas de ovo, ervas lavadas, vísceras de frango, corações de frango e gordura. Desde que mora na cidade, no entanto, usa sacolas plásticas, sacolas de mercado ou sacolas compradas especialmente para carregar lixo, como a que acabou de amarrar. Ele coloca todos os restos não separados no mesmo saco, porque onde ela mora agora não há galinhas nem terra para fertilizar.

Algo similar acontece em Mañana, onde o ritual de uma mãe com a montagem da árvore de Natal é descrito com precisão também cinematográfica, mas indo um passo além, acompanhando os devaneios da protagonista, incorporando-nos na mente dela, vendo aparecer as suas reflexões e pensamentos como num fluxo de consciência, colocando ao leitor em um lugar ainda mais íntimo.

Por último, não poderia não destacar o conto Un zapato y tres plumas, que transporta o leitor para os recantos da memória da personagem (e da nossa), para essa memória afetiva a partir do lugar incômodo, mas como reivindicando o seu poder sobre o passado. Nesse conto, vemos como a linguagem consegue preparar o cenário dramático para o reencontro com o lugar dolorido que se entende só no final, mas que se percebe conforme avança a narrativa.

Assim, Claudia Piñeiro é uma autora que não só nos leva a lugares familiares por meio de relatos cotidianos, mas também nos captura em uma narrativa envolvente pelo estilo e pelas temáticas, provocando reflexões íntimas a partir da memória afetiva, introduzindo-nos na mente e nos conflitos das suas personagens de mistério e suspense.

Sobre Claudia Piñeiro

(Foto: Reprodução)

Claudia Piñeiro (1960) é uma destacada escritora, roteirista e dramaturga argentina. Contabilista formada na Universidade de Buenos Aires, passou dez anos trabalhando com os números até mergulhar de vez no mundo das letras. Sua obra é conhecida por uma linguagem intimista e pelo suspense psicológico criado a partir do conflito interno das suas personagens, sendo uma das escritoras argentinas mais traduzidas. Conta com vários romances adaptados ao cinema como Las grietas de Jara; Elena sabe; y Las viudas de los jueves, disponíveis em plataformas digitais. Foi galardoada com diversos prêmios argentinos e internacionais, como o Clarín de Novela (2005), Literaturpreis der Schwulen Buchläden (2010), Sor Juana Inés de la Cruz (2010), Dashiell Hammett (2021), dentre outros.

Título original: Quién no
Gênero: Ficção, contos
Editora: Alfaguara
Ano: 2018
Páginas: 240
Onde encontrar: disponível em formato físico e eletrônico em livrarias.

Marcelo I. Duhart Salinas é professor de espanhol, tradutor e revisor; licenciado em Ciências Biológicas e atualmente licenciando em Letras – Espanhol e Literaturas da Língua Espanhola na UNIFAL-MG. Foi estagiário de espanhol do Núcleo de Línguas da Universidade e participou dos Seminários de Pesquisa de Estudos Literários sobre Pablo Neruda. Escritor de poesia, contos e relatos, seus interesses de pesquisa são a poesia e o conto hispano-americano.

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