Como você vive? Do luto à aceitação em “O Menino e a Garça”

(Divulgação)

Em memória à minha mãe e à minha avó.

“[..]
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
– mistério profundo –
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.”

Carlos Drummond de Andrade

Diante do cenário da Segunda Guerra Mundial no Japão, um trágico incêndio tira a vida da mãe do protagonista desta comovente história, um menino de apenas 11 anos chamado Mahito. Pouco tempo após o ocorrido, ele se vê obrigado a se mudar para uma cidade do interior do Japão, junto ao pai, para morar com a madrasta – no caso, irmã de sua mãe. Com sua jovem mente ainda muito turbulenta pelos traumas recentes derivados da morte da mãe, Mahito não consegue lidar muito bem com todas as mudanças correntes na sua vida. Durante essa difícil adaptação à nova vida, o menino encontra e acompanha uma garça, um tanto excêntrica, que o observa e o guia até uma misteriosa torre abandonada nos domínios da sua família. Essa torre, levará Mahito a uma jornada mágica e espiritual, onde irá enfrentar seus traumas e sentimentos mais profundos.

Imagem mostra o pôster do filme O Menino e a Garça, dirigido por Hayao Miyazaki. No centro da imagem, um menino de expressão séria veste um uniforme cinza, segura um longo bambu verde e está ao lado de uma garça azul com asas abertas e uma expressão humanizada.
Lançado no Brasil em fevereiro deste ano, O menino e a garça (2023) é ganhador do Oscar de melhor animação de 2024 e também responsável por trazer o diretor e roteirista Hayao Miyazaki de volta da sua aposentadoria para fazer um filme totalmente íntimo e de legado. (Imagem: Divulgação)

O filme O Menino e a Garça (2023), dirigido e roteirizado pelo talentoso Hayao Miyazaki, é o primeiro filme do Studio Ghibli após um hiato de 10 anos. O vencedor do Oscar de melhor animação de 2024 entrega tudo o que se espera de uma obra do estúdio de animação japonês. A viagem no meio de uma encantadora paisagem desenhada, somada ao mundo espiritual e mágico, fazem jus aos longas anteriores como A viagem de Chihiro (2001) e Ponyo (2008). O título original Kimitachi wa Do Ikiru Ka, ou em tradução direta para o português “Como você vive?”, confere todo o sentido à obra, que pode ser considerada a mais subjetiva e complexa – se é que isso for possível – da carreira do Miyazaki.

A nossa fantástica jornada com Mahito no interior da torre se inicia após o desaparecimento de Natsuko, sua tia/madrasta, vista pela última vez indo em direção à construção abandonada. Lá dentro, somos apresentados a uma realidade onde uma linha tênue separa o real do espiritual, o concreto do abstrato, e o vivo do morto. Durante toda a trajetória surrealista do personagem principal, é fácil ficar maravilhado e encantado com os clássicos e belos cenários – feitos por meio de métodos tradicionais de animação, desenhando e colorindo cada quadro à mão – totalmente dignos de tirar o fôlego de quem assiste. Também é revelado um importante personagem, dono e criador daquela torre, o chamado “Tio-avô”. A figura do misterioso mestre da torre, como alguém que mais à frente demonstra querer repassar seu legado, dada sua idade avançada, pode ser facilmente compreendida como uma autorrepresentação do Miyazaki.

De forma subjetiva e repleta de símbolos, o que pode causar estranhamento e confusão a um espectador novato, a animação aborda questões sobre a existência depois de um fim: Mahito lidando com a vida que segue normalmente após uma perda tão dolorosa, e o Tio-avô querendo passar à frente o comando da sua criação, que continuará a existir mesmo depois de sua morte. O sentimento de luto atrelado ao menino reflete toda a dificuldade de voltar a uma rotina com um vazio dentro de si, onde já não existe mais “a normalidade” para ele. Tudo para o garoto é estranho e novo, desde o início do filme até o fim, porém, durante o decorrer da história, vemos o amadurecimento e a coragem dele: constantemente correndo atrás de respostas, abrindo portas sem receio, e enfrentando o desconhecido, sempre assertivo. Seguindo a fala que o diretor já havia feito em uma entrevista antes do lançamento de suas produções “Não vou fazer filmes que digam às crianças: Você deveria se desesperar e fugir”, confirma que, apesar do carácter fantástico, suas animações não são sobre o escapismo e sim a respeito de enfrentar seus problemas. É tão belo e consolador, tanto quanto os abraços ilustrados e animados pelo Studio Ghibli, que o ponto principal da longa-metragem é mostrar que sempre haverá um recomeço. Onde há um fim, existe o depois do fim.

Embora muitos críticos possam dizer que O Menino e a Garça não é um filme para “iniciantes” no universo de animações do Hayao Miyazaki, eu digo que qualquer um consegue usufruir dessa grande obra-prima. O fato de as animações fugirem da lógica dos roteiros ocidentais hollywoodianos, onde existe o bem e o mal, explicações lógicas para tudo e sempre algum plot-twist inserido, apenas entrega mais ainda essa experiência única que é assistir aos filmes do grande estúdio de animação japonês. As obras do Miyazaki não são feitas para serem compreendidas e decifradas completamente, elas são, principalmente, para serem sentidas e apreciadas assim como cada momento de nossas vidas. A animação com o nome original de “Como você vive?” mostra que coisas são tiradas de nós e novos acontecimentos continuarão surgindo. Apesar de tudo, a vida segue, mesmo depois do fim.

Paratexto editorial Resenha Crítica, produzido no âmbito da disciplina “Introdução à Editoração”, ministrada pela professora Flaviane Faria Carvalho, em parceria com os projetos +Ciência (FAPEMIG/UNIFAL-MG) e Laboratório de Estudos Editoriais (PROEC/UNIFAL-MG).

Gabriel Cardoso Oliveira é estudante do 2º período do curso de Letras/Bacharelado em Língua Portuguesa da UNIFAL-MG. Apaixonado por escrever histórias e contos. Amante de artes visuais, jogos eletrônicos e gatinhos. 

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