1 Introdução
A Constituição Federal de 1988 confere competências aos entes da federação (União, Estados-membros, Municípios e Distrito Federal). Sendo as competências constitucionais não mais do que isto: a Constituição dizendo o que cada um dos entes pode e deve fazer. Embora as competências em questão estejam distribuídas ao longo do texto constitucional, seu tratamento acha-se concentrado nos artigos 21, 22, 23, 24, 25 e 30 da CF/88.
Na verdade, a repartição das competências só existe por conta do modelo federativo de Estado – no Brasil praticado, embora segundo modos e graus variados, desde a Constituição de 1891 –, cuja característica elementar é a descentralização política, já que, ao contrário do Estado unitário, em que tudo tende a girar em torno de um único poder político (vide o Brasil Império), no Estado federativo há vários entes políticos autônomos com atribuições (inclusive, federalismo, no cerne, é exatamente isto: distribuição geográfica do poder político entre entes autônomos). Com efeito, se um determinado Estado soberano não atribui competências (logo, autonomias) aos entes que o formam, não há falar em Estado federativo ou federação, a qual pressupõe, precisamente, repartição, divisão ou descentralização de competências entre unidades políticas. De modo que, sob esse aspecto, as competências são a materialização da autonomia caracterizadora de um ente federativo (ZIMMERMANN, 1999).
2 Princípio da predominância do interesse
Dito isso, pergunta-se: com qual critério a Constituição distribui as competências entre os entes federados? A resposta a essa pergunta é dada pelo princípio da predominância do interesse (ALMEIDA, 2005), segundo o qual:
a) a União fica incumbida das matérias que são do interesse de toda a federação, portanto, de alcance (inter)nacional (e.g. legislar sobre direito penal, mais especificamente sobre a criação de crimes, devido à gravidade do assunto e ao tipo especial de segurança jurídica conatural ao nosso direito penal enquanto instrumento de delimitação e redução do poder punitivo etc.);
b) os Estados-membros ficam incumbidos dos assuntos de interesse regional (e.g. instituir, mediante lei complementar, regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum);
c) os Municípios ficam incumbidos dos temas de interesse local (e.g. criar, organizar e suprimir distritos); e
d) o Distrito Federal, devido à sua natureza híbrida, fica incumbido dos tópicos concernentes ao Estado e ao Município.
Portanto, entre nós, a Constituição, à luz do princípio geral da predominância do interesse, distribui competências, no sentido de conferi-las aos entes federados, dizendo o que cabe a cada um. Essa distribuição de competências decorrendo, em última análise, da adoção do modelo federativo, que, repise-se, pressupõe descentralização política, ou seja, a existência de entes federados dotados de autonomia, sobretudo no tocante à capacidade de legislar e para realizar atos administrativos próprios. De sorte que não é “do nada” que a Constituição sai distribuindo competências, assente que ela assim o faz por força do modelo de Estado Federativo (no Brasil, repita-se, adotado desde a nossa segunda Constituição, a de 1891) e conforme um princípio geral norteador, que é o princípio da predominância do interesse.
3 Técnicas de repartição de competência
Todavia, além do princípio ou critério geral acima destacado, há duas técnicas para repartir as competências, comumente denominadas pela doutrina de técnica de repartição horizontal e técnica de repartição vertical (HORTA, 2002).
Muito basicamente, através da primeira, a Constituição dá atribuição ou competência apenas para um ente. Ou seja, é uma forma de atribuição de competência em que, pelo menos de início, somente o ente designado pela CF pode realizá-la. A atribuição é só para um ente, tal como se verifica nos casos da competência exclusiva (indelegável) ou privativa (delegável). No Brasil hodierno, funciona da seguinte maneira: há uma lista de competências da União e uma lista de competências dos Municípios. O que sobra é competência dos Estados, donde o caráter residual ou remanescente da competência destes. (Sempre, lembrando que a competência do DF é cumulativa, compreendendo as competências municipais e estaduais.)
Aliás, essa é a técnica clássica (também conhecida como liberal ou dual) de distribuição de competências, como tal ligada aos primórdios do modelo federativo norte-americano (as competências são distribuídas de forma estanque: x competências para o ente central e x competências para os Estados-membros, uma esfera federativa não participando da outra). Não por acaso, foi a técnica adotada pela Constituição pátria de 1891, a qual, como cediço, teve os EUA por inspiração.
Já a segunda técnica, a vertical, tem que ver com a distribuição de competências “iguais” ou concomitantes para mais de um ente. Aqui, o que se verifica é a ideia de competência compartilhada, um mesmo assunto sendo atribuído a mais de um ente federado, como no caso da competência concorrente (em que, via de regra, a competência é distribuída entre União, Estados e DF), ou a todos os entes, como no caso da competência comum (União, Estados, Municípios e DF).
Aliás, a técnica de repartição vertical de competência é associada ao Estado de Bem-Estar Social, cujo modelo de federalismo tende a ser o de cooperação ou equilíbrio entre os entes federativos em nome da viabilização da consecução das maiores incumbências do Estado socialmente comprometido. No arranjo vertical, os entes federativos efetivamente interagem e colaboram, porque a CF confere competências para grupos de entes federativos. Não por acaso, a técnica vertical de repartição de competências adentra no direito brasileiro a partir da Constituição Federal de 1934 – cujas inspirações, como sabido, foram as Constituições sociais mexicana de 1917 e de Weimar de 1920 –, sendo amplamente (re)adotada, após um percurso acidentado, pela Constituição de 1988 (esta, em matéria de federalismo, já sob a inspiração, outrossim, da Constituição Alemã de 1949), inclusive com a singular inclusão dos Municípios no pacto federativo, fazendo-os também autônomos, logo, também munidos de competências.
Isso posto, vejamos com mais vagar, na sequência, as modalidades de competência segundo o método horizontal, as competências exclusiva e privativa, assim como as modalidades de competência segundo o método vertical, as competências comum e concorrente.
4 Competências constitucionais dos entes federativos
Antes, contudo, é preciso ter em mente que, quanto à natureza das competências constitucionais dos entes federados, pode-se dizer que elas ainda se enquadram em duas grandes categorias maiores, quais sejam, as competências materiais ou administrativas (competências executivas, de “fazer”) e as competências legislativas (competências para criar normas jurídicas, ou seja, para inovar na ordem jurídica) (SILVA, 2002).
Nas primeiras, o que se observa é a Constituição Federal conferindo aos entes da federação atribuições de natureza administrativa, como, por exemplo, o planejamento e a organização das atividades político-administrativas, a realização de políticas públicas e a prestação dos serviços de responsabilidade estatal. Motivo pelo qual se tratar de uma categoria de competências mais direcionadas ao Poder Executivo. Já nas segundas, o que se nota é a Constituição Federal atribuindo aos entes incumbências legislativas acerca de vários assuntos, donde direcionar-se ao Poder Legislativo (Congresso, Casas Legislativas, Câmaras Municipais).
Pois bem. As considerações que se seguem têm por base as técnicas horizontais (competências exclusivas e privativas) e verticais (competências comuns e concorrentes) de repartição das competências segundo sua natureza administrativa ou legislativa.
4.1 Competências materiais/administrativas
Apresentam-se de duas formas: ora como competências exclusivas, ora como competências comuns.
4.1.1 Competências exclusivas
A referência é o art. 21 da CF/88, em que se verifica a União como protagonista. Como se nota do estudo do texto constitucional, parte considerável dessas competências é muito semelhante às competências do Presidente da República constantes do art. 84 da CF/88 (vide, por exemplo, as competências da União enquanto representante da República Federativa do Brasil no plano internacional, ou seja, enquanto pessoa jurídica de direito público externo). Inclusive, no texto constitucional, constata-se um padrão interessante: a indicação das competências exclusivas começa com um verbo (e.g. administrar, manter, declarar, assegurar, permitir, decretar, autorizar, emitir etc.), no sentido de ações e políticas e atos que o Poder Executivo deve implementar (e.g. administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada). Ademais, são exclusivas senão porque não permitem delegação.
4.1.2 Competências comuns
Concentram-se no art. 23 da CF/88. As competências comuns, como a própria nomenclatura avança, são as competências dadas a todos os entes da federação, tornando-os, assim, corresponsáveis por um determinando conjunto de tarefas. São competências cujo teor denota certa natureza especial, a ponto de todos os entes federativos receberem poder para desempenhá-las. Seus verbos passam a ideia de cuidado, de zelo, de proteção. Para não gerar conflito, a Constituição, no parágrafo único do art. 23, dispõe sobre como essa atuação conjunta (mista) dos entes federativos deverá ocorrer: leis complementares, feitas pela União, determinarão as regras da cooperação (colaboração) dos entes no processo de consecução dos fins colimados pela competência comum (e.g. cabe ao “Código Ambiental” dispor sobre o exercício da competência comum para as atividades executivo-administrativas atinentes ao meio ambiente.)
Vistas as competências administrativas, passemos às legislativas.
4.2 Competências legislativas
Por óbvio, são direcionadas ao Legislativo dos entes federados. Ora se apresentam como competências privativas, ora como concorrentes.
4.2.1 Competências privativas
Acham-se emblematicamente previstas no art. 22 da CF/88 e têm a União como paradigma (embora, advirta-se, os Municípios, por força do art. 30 da CF/88, também tenham lá sua competência privativa segundo o critério do interesse local). No dispositivo em questão (art. 22), a Constituição traz e dispõe sobre uma série de assuntos que compete ao ente central legislar.
Não se confundem com as competências exclusivas porque, para além do fato destas consistirem em competências administrativas e as privativas em competências legislativas, diferenciam-se no seguinte ponto: ao contrário das exclusivas, as privativas permitem delegação. Mas, para efeitos do assunto em tela, o que é delegação? Em essência, no caso é a possibilidade de a União passar para os Estados (e o DF) a sua atribuição – desde que atendidos os seguintes requisitos constitucionalmente estabelecidos: que a delegação seja feita mediante lei complementar federal; que a delegação não seja para este ou aquele Estado, mas para todos os Estados (e o DF); e que a delegação tenha por objeto unicamente matérias específicas dentre as que conformam as competências privativas. Por exemplo: conforme o inc. I do art. 22 da CF/88, cabe ao Legislativo da União, dentre outras coisas, legislar sobre direito do trabalho. Logo, no Brasil, quem deve criar leis trabalhistas é a União, mais especificamente o Congresso (vide a CLT, que é uma lei federal). Acontece que hoje temos uma lei complementar (lei nº 103/2000) que passa para os Estados a competência para legislar sobre piso salarial, o qual é apenas uma matéria específica dentro do universo do direito do trabalho.
Ainda, vale destacar que, não raro as competências privativas (que têm natureza legislativa) apresentam-se intimamente ligadas às competências exclusivas (que têm natureza administrativa/material), afinal, muitas vezes, a implementação de uma política pública passa por sua estruturação numa lei de envergadura nacional. Como exemplo, vide o que se passa com o serviço postal, o qual tanto é competência exclusiva da União no tocante à prestação, quanto é competência privativa da União no concernente à legislação.
4.2.2 Competências concorrentes
Constam do art. 24 da CF/88. Têm essas competências a União, os Estados e o DF. (A Constituição não incluiu os Municípios na competência concorrente, embora, como veremos logo mais, o STF tenha reconhecido a competência concorrente dos Municípios em alguns casos excepcionais.) Todavia, se é concorrente, por que não gera confusão? Porque a Constituição diz o que compete a cada ente federado da seguinte maneira: a União cria as normas gerais e os Estados e o DF legislam criando normas específicas.
O nome dessa competência exercida pelos Estados e o DF denomina-se competência suplementar. Como exemplo, tomemos o que se passa com a competência concorrente acerca da legislação sobre florestas. Aqui, a União cria a norma geral (vide o Código Florestal) e os Estados podem suplementar essa norma geral, trazendo aquilo que falta. Assim, quando os Estados criam essas normas específicas, eles estão exercendo o que se chama de competência suplementar. Naturalmente, quando os Estados legislam suplementarmente, eles não podem contrariar a norma geral federal da União sobre o assunto.
Porém, e quando o ente central não cria a norma geral? Neste caso, a própria Constituição diz que, na inexistência de norma geral, caberá então ao Estado exercer a competência legislativa plena (também denominada supletiva), para dar conta das suas peculiaridades. Ou seja, in casu, o Estado poderá criar uma lei estadual trazendo tanto normas gerais quanto específicas.
Porém, e se depois que o Estado legislou a União cria a norma geral federal? Segundo a Constituição, na superveniência de lei federal, a lei estadual será suspensa naquilo em que for contrária à norma geral federal. (Entendamo-nos: não é caso de revogação, já que, ao contrário desta, a suspensão atinge apenas o plano da eficácia da norma, não atingindo os demais planos, o da validade e o da vigência. O que significa dizer que, tecnicamente, a lei estadual continua válida e vigente, embora desprovida de eficácia – tanto que, se, posteriormente, outra lei federal entrar em cena e revogar a lei federal anterior que suspendeu partes ou dispositivos da lei estadual contrários a ela, mas agora compatíveis com a nova lei federal, tais partes ou dispositivos da lei estadual voltam a ter eficácia, exatamente porque compatíveis com a nova lei federal.)
Por fim, vale advertir que, conforme acima ventilado, o STF entende que, a despeito da ausência de expressa previsão constitucional, os Municípios podem legislar (ao menos) sobre algumas matérias que sejam de competência concorrente, desde que para suplementar a legislação estadual e federal e desde que sobre assunto de interesse local. Por exemplo: a competência para legislar sobre meio ambiente é concorrente. (Atente-se: uma coisa é a competência administrativa para as atividades de preservação/proteção do meio ambiente: esta é comum; outra coisa é a competência para legislar sobre meio ambiente: esta é concorrente.) Logo, segundo a literalidade do texto constitucional, os Municípios não poderiam legislar sobre meio ambiente (somente a União, os Estados e o DF poderiam). Mas, segundo a interpretação constitucional do STF, os Municípios poderão legislar sim, desde que a lei municipal disponha sobre assunto ambiental de interesse local e sem contrariar as leis estadual e federal.
5 Conclusão
Inúmeros outros pontos sobre a competência constitucional dos entes federativos poderiam ser considerados, a exemplo do ponto atinente às peculiaridades da competência dos Estados-membros, os quais, além das competências expressas comuns e concorrentes (arts. 23 e 24 da CF/88) e algumas próprias (§§ 2º e 3º do art. 25 da CF/88), têm a competência reservada/residual/remanescente (§ 1º do art. 25 da CF/88), ou seja, aquela competência (material/administrativa ou legislativa) que se subtende ser dos Estados, uma vez que não vedada a eles e não atribuída à União e nem aos Municípios (e.g. competência para a exploração e regulamentação do serviço de transporte intermunicipal); ou do ponto referente às competências privativas dos Municípios (art. 30 da CF/88), que são basicamente competências para legislar sobre assuntos de interesse local (e.g. Plano Diretor); ou, ainda, do ponto acerca dos dilemas do federalismo, “[…] tais como o da universalidade versus focalização das políticas públicas, o da uniformidade versus diversidade na configuração das medidas de solução, e o da cooperação versus competição na relação entre os entes federativos” (MOHN, 2010, p. 243).
No entanto, para efeitos do que aqui nos propomos, é o quanto basta sobre o assunto.
6 Referências
ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2005.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
MOHN, Paulo. A repartição de competências na Constituição de 1988. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010, p. 215-244.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
ZIMMERMANN, Augusto. Teoria geral do federalismo democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.
Waldir Severiano de Medeiros Júnior é pós-doutorando em Direito e Justiça (FDUFMG). Mestre e Doutor em Direito e Justiça (FDUFMG). Professor colaborador de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG. Consultor Jurídico (OAB-MG 216.370). Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política e Administração Pública.
Renato Rezende Neto é professor de Direito no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG, campus Varginha. Mestre em Administração Pública, Especialista em Direito Penal e Direito Médico e Saúde, e Oficial da Reserva do Exército Brasileiro (R2). Temas de interesse: Direito, Filosofia, Política, Administração Pública.
Alexandre Moreira de Souza Anaguchi é doutor em Direito (FADISP), mestre em Direito (FDSM), especialista em Advocacia Pública (ESAGU), especialista em Direito Público (PUC/MG) e especialista em Direito do Trabalho (UCM/RJ). Advogado e Procurador do Estado de Minas Gerais. Professor Universitário (graduação e pós-graduação). Temas de interesse: Direito e Administração Pública.
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